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É uma pergunta interessante, difícil e manifestamente importante: “Quando um novo ser humano começa a existir?”. Muitas questões morais, políticas e jurídicas cruciais dessa resposta resposta. Mas essa pergunta é diferente de outra: “Como deveríamos responder essa questão difícil, interessante e importante?”. Essa pergunta sobre a investigação é levantada por Matthew Lu em um ensaio publicado no Public Discourse [e traduzido para o português pela Gazeta do Povo]

O ensaio de Lu é provocativo, pois sugere que os ativistas pró-vida não estão completamente certos em acreditar que a investigação científica pode responder a pergunta de quando a vida humana começa. Lu menciona o senador Marco Rubio como um exemplo disso. Rubio disse a Sean Hannity que a “ciência está estabelecida, não é nem mesmo um consenso, é uma unanimidade que a vida humana começa na concepção”. 

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Acredito que Rubio também poderia ter apontado Robert P. Geroge e eu. No começo do nosso livro “Embryo: A Defense of Human Life” (“Embrião: Uma Defesa da Vida Humana”, em tradução livre), escrevemos: 

A embriologia nos diz duas coisas importantes sobre os embriões humanos: o que eles são e quando eles começam a existir. Ela nos diz que os embriões humanos são seres humanos em um certo estágio (muito prematuro) de desenvolvimento e que, na grande maioria dos casos, esses seres humanos começam a existir na concepção, o início de um organismo unicelular após a fertilização de um óvulo por um espermatozoide.

George e eu fomos muito cuidadosos em delimitar a nossa discussão de conhecimento científico a um conjunto muito limitado de termos. O principal deles foi o termo “ser humano”. Seres humanos são entidades com as quais estamos familiarizados: nós os conhecemos e falamos em eles regularmente e muitos, embora talvez nem tantos, acabarão lendo o nosso livro. Também importante foi o termo “embrião humano”. Por muito tempo, na história humana, o objeto denotado por esse termo não podia ser alvo de grandes investigações empíricas. Assim, a investigação do desenvolvimento pré-natal foi irremediavelmente especulativa. Mas os embriões, humanos ou não, agora estão disponíveis para investigação científica empírica. 

Seres humanos e embriões humanos 

Considerando que temos duas entidades, uma facilmente observável e outra observável com equipamento apropriado, é natural questionar qual a relação entre ambas: os embriões humanos são seres humanos, membros da mesma espécie biológica que aqueles seres com os quais conversamos todo dia? E quando, conforme eu discutirei a seguir, foi dada a resposta de que, sim, embriões humanos são seres humanos, também foi natural questionar quando esses embriões começaram a existir, pois responder essa questão seria suficiente para responder a questão “Quando uma nova vida humana começa a existir?”. 

Perceba que nós não perguntamos quando a vida começa, muito menos quando a vida humana começa. Essa questão é vaga e ambígua. A vida humana começou há cerca de duzentos mil anos, um fato irrelevante para os objetivos do nosso livro. Também não perguntamos quais os critérios para se assegurar de que um ser vivo existe. Essa questão pode ser entendida de vários modos. As nossas perguntas são muito simples e podem ser respondidas por qualquer pessoa que conheça seres humanos e embriões humanos. 

Mas nem todo mundo está igualmente qualificado para responder essas perguntas. Questões sobre o embrião humano e o seu surgimento parecem ser questões da biologia, e os biólogos parecem ser autoridades capazes de respondê-las. E eles já responderam essas duas perguntas de um modo que se aproxima de um consenso universal: os embriões humanos são seres humanos, e embriões humanos, exceto quando produtos de geminação monozigótica ou clonagem humana, passam a existir no momento da concepção, quando um espermatozoide penetra um óvulo, e ambos deixam de existir como gametas haploides e um novo ser humano único e completo passa a existir. 

Mas Lu argumenta em seu ensaio que a ciência não é suficiente para estabelecer esses vereditos; em vez disso, a metafísica da vida seria necessária, em primeiro lugar, para oferecer uma abordagem filosófica do que é a vida. “Quando estabelecermos um parâmetro metafísico sobre a vida, aí sim a embriologia empírica poderá nos dizer se as condições relevantes são cumpridas”, escreve Lu. 

Parafraseando Lu, acredito que “essa alegação não é totalmente falsa”. Não é totalmente falsa porque o trabalho feito por embriologistas para responder essas perguntas sobre o embrião humano foi apoiado implicitamente em respostas a outras perguntas sobre a vida embrionária, que nem sempre foram articuladas de modo explícito por esses biólogos. 

Além disso, ambas as perguntas implícitas e as suas respostas comportam claramente o nosso entendimento, tanto pré-filosófico quanto filosófico, de conceitos como vida, ser vivo, organismo, indivíduo, entre outros. Portanto, a reflexão filosófica sobre tópicos biológicos se aproxima muito do trabalho dos biólogos e trabalha com conceitos que, de modo explícito ou implícito, guiaram o trabalho desses biólogos. Ainda assim, argumento que o trabalho do biólogos deve primeiramente responder as perguntas sobre embriões que identifiquei, e eles simplesmente não precisam de orientação da filosofia para isso. 

As questões implícitas dos biólogos 

Quais foram as perguntas que guiaram a abordagem dos biólogos em relação aos embriões humanos? A sua investigação exigiu atenção a pelo menos às seguintes:

Em primeiro lugar, o embrião age como um organismo único? As ciências biológicas não estão preocupadas apenas com a “vida” – estão preocupadas com os seres vivos. A identificação de algumas coisas como seres vivos exige a capacidade e a disposição de ver certos conjuntos de matéria e energia como agentes de processos que chegam a um fim. Como Lu aponta, os seres vivos têm “poderes de causalidade imanente” que são “direcionados para o seu bem”.

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Isso é verdade e admite muita análise filosófica. Mas essa análise não foi necessária para os biólogos que descobriram que o embrião age, de fato, como um organismo individual manifestando a forma de vida de uma espécie particular, e não como um grupo de indivíduos a caminho de se tornarem alguma coisa única. 

Em segundo lugar, os biólogos perguntaram se o embrião possuiria uma distinção de função, uma divisão de trabalho tal que nele poderiam ser identificadas partes distintas. Se o embrião fosse simplesmente, como alguns alegam, uma massa indiferenciada de células, ele não poderia ser um organismo vivo completo. 

Portanto, os biólogos buscaram o tipo de conhecimento eventualmente obtido por Magdalena Zernicka-Goetz, da Universidade Cambridge, que tingiu as primeiras duas células do embrião, uma de vermelho e outra de azul, e então rastreou os seus descendentes no blastocisto. Como um artigo da revista Nature aponta: 

Uma célula geralmente dá origem à região que contém o embrioblasto, a outra dá origem à região destinada em grande parte a criar a placenta e outros tecidos de apoio. [...] A conclusão de Zernicka-Goetz é que essa divisão do ovo influencia o destino de cada célula e, finalmente, todos os tecidos do corpo. ‘Existe uma memória da primeira clivagem das nossas vidas’, diz Zernicka-Goetz. 

O ensaio da Nature conclui: “O que está claro é que os biólogos do desenvolvimento não desconsiderarão os embriões de mamíferos em fases iniciais como pacotes de células sem características”. 

Os biólogos estavam preocupados com essa unidade na diversidade justamente porque eles reconhecem isso como uma característica de seres vivos naturais, nos quais o desenvolvimento de tal unidade na diversidade é, desde o começo, o modo como indivíduos se desenvolvem em uma forma de vida complexa; eles não surgem espontaneamente de um mero agregado de substâncias biológicas. Há muita coisa para os filósofos se debruçarem aqui, mas a conclusão é constitutiva do conhecimento biológico, sem o qual não existiria essa disciplina. 

Em terceiro lugar, os biólogos investigaram se o funcionamento coordenado de diferentes partes do embrião era reconhecidamente ordenado para o bem de todo o embrião. 

Um modo pelo qual essa questão foi abordada foi por meio do estudo da natureza regulativa do embrião, como visto, por exemplo, na capacidade de as células mudarem a sua trajetória de desenvolvimento quando são movidas de uma parte do embrião para outra. Essas adaptações são cruciais para o embrião preservar a sua estrutura normal. Elas foram descobertas pela primeira vez no começo do século 20 por embriologistas experimentais, como Wilhelm Roux, Hans Dreisch e Hans Spemann. 

Ciência, filosofia e respostas definitivas 

Agora, novamente, todas essas questões admitem exploração filosófica, e levantarão uma série de perguntas interessantes e importantes. E, de certo modo, é o trabalho da filosofia articular as perguntas que motivam certos aspetos da investigação embriológica. Mas foram os biólogos que fizeram essa investigação; eles foram guiados, algumas vezes de modo explícito, outras de modo implícito, por essas e outras questões. O trabalho da filosofia é amplamente subsequente a essa iniciativa. 

O mesmo aconteceu quando os embriologistas avançaram a investigação para a questão de quando o embrião começa a existir. Essa investigação foi, do mesmo modo, guiada pelo desejo de descobrir quando existiu um indivíduo único com os “poderes de causalidade imanente” necessários para ser considerado um ser autointegrante e em desenvolvimento, como o zigoto, desde o momento da penetração do espermatozoide. Mas esse conhecimento do que significa ser um organismo vivo era interno à biologia. Na verdade, mal poderia existir uma disciplina de biologia sem esse conhecimento. 

O trabalho da filosofia nunca acaba e os filósofos continuarão a analisar, interpretar e teorizar sobre a embriologia de modos diferentes e incompatíveis. Isso é parte da natureza da filosofia. Apesar de ser orientada para a verdade, ela não resulta no mesmo tipo de convergência e consenso que as ciências. Se a filosofia realmente fosse um pré-requisito necessário para o estudo da embriologia, nunca teríamos respostas definitivas para as nossas perguntas. 

Por que a ciência admite e a filosofia não admite convergência é uma pergunta filosófica difícil por si só. Mas essa diferença sugere que, para chegar ao conhecimento, a ciência vem em primeiro lugar e não precisa esperar os pronunciamentos da filosofia para investigar as questões apropriadas ao seu domínio: qual a natureza dessa entidade biológica (o embrião humano)? Quando ela começou a existir? 

Rubio foi consistente. Todos os filósofos (e, do mesmo modo, membros do governo) seriam sábios se reconhecessem isso e tomassem o consenso científico que ele evocou como o seu ponto de partida. Ao fazer isso, os filósofos podem se assegurar de que o nosso trabalho especulativo e analítico não foi desviado da realidade da vida humana. 

Christopher O. Tollefsen é professor de Filosofia na Universidade da Carolina do Sul e associado sênior no Witherspoon Institute. É autor do livro “Lying and Christian Ethics” (“A Mentira e a Ética Cristã”, em tradução livre).

Publicado em português com permissão. Original em Public Discourse: Ethics, Law and the Common Good.

Tradução: Andressa Muniz.
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