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 | Henry Milléo/ Arquivo/Arquivo
| Foto: Henry Milléo/ Arquivo/Arquivo

Se existe alguma palavra que a defina, a intervenção federal no Rio de Janeiro é estarrecedora. Espanto, perplexidade, pavor: é isso o que se passa quando medidas excepcionais assumem papel de protagonismo no debate jurídico-político. Trata-se de mecanismo extremo para debelar crises que ameacem a federação, e nunca havia sido utilizada na atual Constituição. Afinal, para garantir o federalismo, ela contraria, ainda que temporariamente, o princípio da autonomia dos estados. O governador e a Assembleia Legislativa – isso sem se falar no Poder Judiciário – restam submetidos ao chefe do Poder Executivo federal. É disso que estamos falando. 

Como toda medida constitucional para lidar com situações de crise extrema, há um caráter híbrido, pois é tanto política quanto jurídica. Ainda que a decretação da medida passe pela análise política de sua necessidade e utilidade, há limites e controles estabelecidos na Constituição que devem ser cumpridos, sob pena de inconstitucionalidade. 

Inicialmente, deve ser enfrentada a questão da necessidade e utilidade. Esta análise política é de competência da Câmara e Senado nas votações do decreto – momentos em que poderão rejeitá-lo, encerrando a intervenção. Entretanto, chama atenção que, na mensagem presidencial enviada à Câmara (80/2018), não se apresente nenhuma justificativa além da mencionada no próprio decreto, ou seja, “por termo a grave comprometimento da ordem pública”.

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Esse ponto é muito relevante, porque há outros mecanismos jurídicos de cooperação em segurança pública, bem menos gravosos. Nesse sentido, seria de se esperar que fossem apresentados os motivos pelos quais a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ou o uso da Força Nacional de Segurança não seriam suficientes para enfrentar a proclamada crise. Tampouco se menciona o que mudou nessa semana em relação a períodos anteriores. Por que agora há grave comprometimento da ordem pública e antes não havia? Quais foram as medidas que se frustraram? A intervenção atende à proporcionalidade, em seus três níveis? Ela é adequada (conformidade de meios), necessária (exigível) e proporcional em sentido estrito? 

Absolutamente nada disso foi trazido à luz. A expressão genérica utilizada no decreto – quase um chavão, um clichê – e a aparente falta de projeto para a intervenção podem levar a crer que a medida extrema foi tomada sem o devido planejamento. Isso pode ser desastroso, eis que levaria a resultado inócuo, ou pior, prejudicial à segurança pública do estado. De qualquer modo, sem planejamento expresso não se sabe quais são os objetivos concretos – e como serão avaliados. Ou seja, vale tudo. 

Em segundo lugar, do ponto de vista formal, para que a intervenção seja válida, ele deve ser objeto de manifestação do Conselho da República e Conselho de Defesa Nacional (arts. 90 e 91 da Constituição Federal). A mesma Constituição que atribui tal competência ao Presidente a submete a exame externo. Esses conselhos são órgãos de assessoramento do presidente e, embora sua opinião não seja vinculante, devem ser consultados. A reunião dos dois conselhos foi marcada para depois do decreto: os órgãos consultivos foram a ele subjugados. O argumento é o de que a Constituição não estabelece o momento em que os Conselhos devem se manifestar. Contudo, existe sensível diferença entre a consulta (prévia) e a aprovação (posterior) de decreto presidencial dessa envergadura. Ao que tudo indica, os conselhos não darão conselhos, mas se submeterão. Essa aprovação a posteriori esvazia a função constitucional desses órgãos de assessoramento do Presidente. 

Depois, ponto igualmente controvertido é a natureza do cargo do interventor. O decreto estabelece que o cargo é militar. Esse dispositivo tem duvidosa constitucionalidade, pois não poderia haver substituição do poder civil pelo militar, o que traz como consequência que a organização e medidas tomadas sigam os parâmetros militares, inclusive com competência de julgamento da Justiça Militar. Isto é, se os militares se envolverem em atos que possam configurar, em tese, crimes (pode-se antever a morte em confrontos), quem os julgará? Mais: se a polícia civil, ao dar estrito cumprimento a ordens do comando militar, lado a lado com soldados do exército, se vir envolvida nos mesmos crimes, haverá julgamentos em duas instâncias? Estará derrogada, por decreto, a jurisdição estadual? 

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Para além desses três pontos, trazidos no calor da hora, talvez o assunto mais sensível seja o arranjo constitucional que está por detrás do decreto interventivo. Ou melhor, a desordem constitucional por ele gerada. Afinal, um dos pontos centrais da intervenção tem sido a (im)possibilidade de votação da reforma da Previdência. Estamos a falar do exercício do poder constituinte – aquele que cria o poder juridicamente exercitado pelo presidente (e respectivos limites). Pois a edição do decreto inibe o poder que criou esse mesmo decreto: a criatura a limitar o criador. 

Ora, é indiscutível que a intervenção federal impede emendas à Constituição. O objetivo desta proibição é evitar alterações constitucionais sem a devida deliberação, seja porque há efetivamente crise que demanda atenção urgente do Congresso Nacional, seja para impedir manipulações no debate. A Constituição é preciosa demais para ser modificada em momentos de crise institucional aguda. A toda evidência, essa limitação teve pressuposto mais ingênuo: uma vez decretada a intervenção, não se pode dar o próximo passo e instalar o exercício do poder constituinte. É pouco provável que se cogitasse da medida inversa: a intervenção como um poder supraconstituinte, a concentrar toda a força de mudar a Constituição numa só pessoa, o Presidente da República. Hoje, é ele – e só ele – quem rege a cronologia do exercício desse poder constitucionalmente atribuído ao Congresso Nacional. 

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As coisas pioram ainda mais devido à afirmação de que seria possível suspender a intervenção federal para votar a reforma da previdência – e depois restabelecê-la, a talante do presidente. Tal alternativa implica contrariar o próprio objetivo do mecanismo constitucional. Ou a situação é grave e justifica a intervenção até o dia 31 de dezembro, conforme dispõe o decreto; ou não é grave e não se deve decretar essa medida extrema. Evidente que poderia haver uma terceira opção: a situação seria normalizada antes do prazo previsto, o que levaria à revogação da intervenção. Mas supor que se possa decretar, suspender a decretação, e voltar a decretar é assumir de início que o tema não justifica o uso da medida gravosa. 

Dúvida não pode haver de que vivemos dias peculiares. Se o direito constitucional era o suprassumo de todo o sistema jurídico, a lhe conferir estabilidade e segurança, hoje está de tirar o fôlego. Ao que tudo indica, a Constituição está sendo manuseada. De “estatuto jurídico do político” (para usarmos a expressão de J. J. Gomes Canotilho), pode vir a se tornar o “estatuto político do jurídico”. Isso porque a história nos mostra que banalizar o uso de expedientes de resolução de crises só enfraquece a Constituição e cria o clima de que as regras não são válidas. É evidente que o tema da segurança pública é relevante e precisa estar na pauta política, mas a utilização da intervenção não faz isso. Ao contrário, cria cortina de fumaça que dificulta soluções duráveis e eficazes a uma questão que demanda planejamento e alternativas, a colocar em xeque o que temos de mais precioso em um Estado que se pretenda Democrático de Direito.

Egon Bockmann Moreira é doutor em direito e professor da Faculdade de Direito da UFPR. Heloisa Fernandes Câmara é doutora em direito e professora das Faculdades de Direito da UFPR e do Unicuritiba.

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