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Imagem ilustrativa | Pixabay
Imagem ilustrativa| Foto: Pixabay

No domingo (25), às 12h11min, o coletivo Mídia Ninja publicou nas redes sociais um vídeo impressionante, que rapidamente se espalhou pela internet: um EcoSport sobe a rua Augusta, em São Paulo, atropelando diversos skatistas que desciam em grupo no evento SkateDay. As imagens parecem falar por si. O título da postagem no Facebook é claro: “Absurdo Homicida”, em caixa alta. Em pouco tempo, o tribunal das redes sociais já condenou sumariamente o motorista. Mas por que a força das imagens nas redes sociais nos leva a querer condená-lo tão rápido? E o que essa vontade de condenação revela sobre nós e os dramas do nosso sistema judiciário? 

Na tarde da segunda-feira (26), a polícia finalmente encontrou o condutor e o teor de seu depoimento complicou qualquer análise precipitada da situação. À polícia, segundo informa a imprensa, o motorista disse que a rua não estava devidamente interditada e que, após colidir com o primeiro skatista, seu carro começou a ser atacado. Outros carros de fato subiam a rua Augusta. Com medo de ser linchado, o condutor, que estava, segundo relata, com um amigo e a mãe de 80 anos no carro, acelerou para escapar da situação. 

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Algumas horas depois, o portal G1 divulgou um vídeo de câmaras de segurança do local que embaralha ainda mais a cena: aparentemente, o EcoSport foi atacado pelos skatistas antes de acelerar rua acima. Eis o que revelam as imagens divulgadas pelo G1: até às 9h 48min 13s, uma câmera voltada para o sentido Avenida Paulista mostra que os skatistas desciam, no sentido centro, uma pista da rua Augusta, enquanto carros e ônibus subiam para a Avenida Paulista na outra pista. Há um corte e a imagem muda de direção. Às 9h48min38s, aparentemente, os skatistas já estão descendo pelas duas pistas da rua Augusta. O EcoSport passa pelo meio deles. Estavam entre a Marquês de Paranaguá e a Dona Antônia de Queiroz. 

O EcoSport terá sido retardatário na fila de carros que já subia? A Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) ou a polícia errou ao deixar, cedo demais, que os skatistas tomassem a Augusta inteira? Os skatistas invadiram a outra pista sem autorização?

No domingo, a CET informou que tinha bloqueado a rua às 9 h20. Mas, na segunda-feira, disse que o só fez o bloqueio às 10h. A imagem de 9h 48min 50s volta para o sentido original e é possível ver que o EcoSport encosta na fila de carros que subia a Augusta. Nesse momento, alguns rapazes voltam correndo e começam a jogar os skates no carro. Em menos de 10 segundos, a multidão já se agita e cerca o carro. Todo mundo já viu o que uma turba enfurecida é capaz de fazer com um veículo parado. O motorista acelera. O primeiro vídeo divulgado pelo Mídia Ninja mostra o instante posterior a esse ponto, enquanto o EcoSport passa pela esquina da Dona Antônia de Queiroz, já depois de ter sido atacado. Por que não virou na primeira esquina? Quanto mais ele subiu depois dessa esquina? Saiu da rua Augusta na primeira oportunidade que teve? 

A disputa entre pedestres, carros, bicicletas e demais meios de transportes polariza a cidade de São Paulo há anos. Esse foi um dos temas de maior embate nas eleições de 2014. Mas por que as pessoas que simpatizam com a “oposição aos carros” não questionam seus próprios vieses antes de julgar as imagens de um carro em situação tão peculiar? A mesma pergunta pode ser feita para quem quer relativizar a culpa do motorista antes de enfrentar todas as questões relevantes só porque acha um absurdo fechar as ruas para manifestações políticas e culturais. 

O projeto O que você vê?, do jornal The New York Times, enfrenta esse problema. Na página, você começa respondendo a uma pergunta: “Como você se sente em relação à polícia?”. Vendo então um vídeo do ponto de vista da câmera no corpo de um policial, você deve responder a perguntas do tipo “Quão séria é ameaça ao policial?” e, depois, “Quanto você está certo da sua resposta?”. Por fim, a página revela a situação de um ponto de vista mais amplo e vemos que, afinal, as aparências enganam. O projeto também apurou que 28% daqueles que, em geral, confiam na polícia veem uma situação ameaçadora, enquanto apenas 19% dos que, em geral, não confiam na polícia enxergam a mesma situação do mesmo modo. As aparências enganam porque nossos vieses cognitivos nos fazem ver nas imagens o que querem ver. Lutar contra esses vieses é o mais perto que podemos chegar de alguma objetividade nos juízos jurídicos e morais. 

Se o relato do condutor do EcoSport for verdadeiro, as imagens mostram um veículo conduzido por alguém amedrontado, com a mãe idosa de 80 anos dentro do carro. Do ponto de vista moral e jurídico, a pergunta para determinar a responsabilidade do condutor é o que teria feito alguém razoável nessa situação concreta. Juridicamente, por exemplo, a discussão pode se encaminhar para saber se o motorista agiu em “estado de necessidade”, ou seja, se a existência de uma situação de perigo desconstitui o crime. Mas o motorista não poderia ter criado ele mesmo o perigo ou deixado de antevê-lo, se isso fosse razoável. Responder a essas perguntas demanda um esforço que o tribunal das redes sociais não costuma fazer.

Perguntar pelas nuances da situação não é uma tentativa de livrar a barra do motorista. Só pensa assim quem, de antemão, convencido pelo poder das primeiras imagens, supuser que o condutor é mesmo culpado. Como também pensa assim, embora com o sinal trocado, quem não simpatiza com skatistas e acha desde logo que o motorista é inocente. A análise do caso concreto – o que alguém razoável faria na situação? –, é (ou deveria ser) o centro da atividade dos juízes e do tribunal do júri, nos casos dos crimes dolosos contra a vida. 

Nesse caso, felizmente, ninguém morreu, e o motorista será investigado por lesão corporal. Mas, se alguém tivesse falecido em decorrência do atropelamento, o condutor  poderia ser acusado por homicídio doloso, por dolo eventual, em que a pessoa “assume o risco de matar”. Facilmente poderia ir a júri popular. Condenado pelo tribunal das redes sociais, que chance teria de ser inocentado por um júri já massacrado pelas imagens e análises dos comentaristas de plantão? Como combinar liberdade de expressão e de imprensa com a garantia de um julgamento imparcial? Os Estados Unidos já discutem essa questão a sério há décadas. Nós ainda engatinhamos.

Do ponto de vista social, a pergunta é por que ninguém, nem os skatistas, nem o condutor, sentiu-se seguro para dialogar ou sequer pensou nessa possibilidade. Por que uma aparente confusão de trânsito, em que ninguém ainda tinha saído machucado, precisou terminar naquelas imagens impressionantes? Estamos perdendo a capacidade de raciocinar moralmente em situações-limite? Quais as consequências jurídicas disso no momento de determinar a culpa de uma pessoa? Para perguntas difíceis, a última coisa que precisamos é de respostas fáceis e precipitadas.

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