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Desde que a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) se recusou, no dia 27 de junho, a ouvir o apelo de Connie e Chris Gard, o drama do jovem casal inglês ganhou o mundo. Seu filho de 11 meses, Charlie Gard, sofre de uma doença raríssima e está internado desde outubro do ano passado na Inglaterra. Os médicos, que não veem mais possibilidades de reverter o quadro do bebê, querem desligar os aparelhos que o mantêm vivo, oferecendo os cuidados paliativos, mas os pais discordam da decisão e querem levá-lo para os Estados Unidos. O caso foi parar na Justiça, que autorizou o hospital a desligar o respirador e negou o pedido de transferência do pequeno. 

A odisseia de Charlie Gard e sua família levanta questões que mexem com o âmago do que é ser humano. Até quando compensa lutar para salvar uma vida? Há vidas que não valem a pena ser vividas? Quando quem sofre é uma criança que não pode dizer o que quer, a decisão limite cabe somente aos pais? Como o direito pode equacionar todas essas perguntas e dar uma resposta minimamente satisfatória em cenários de incerteza? Essas não são questões pertinentes apenas para o direito inglês, pois um caso como o de Charlie Gard poderia muito bem ocorrer à luz do direito brasileiro. 

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O paradoxo entre pais que querem manter o filho vivo e juízes que autorizam que os aparelhos sejam desligados cala fundo em quem ouve a história e está sendo explorado à exaustão pela mídia britânica. Agora, no mundo todo. Até o Papa Francisco e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se manifestaram no Twitter no início deste mês. 

O caso de Charlie tornou-se ainda mais peculiar, porque desde o início não se tratava de uma questão de recursos finitos: seus pais levantaram, até agora, cerca de 1,3 milhão de libras esterlinas em uma campanha na internet para levar o filho para os Estados Unidos. Na terça-feira (18), uma comissão da Câmara dos Deputados do país aprovou uma emenda a um projeto de lei para conceder cidadania americana ao bebê e a seus pais, mas é difícil imaginar como a aprovação dessa medida poderia mudar a situação jurídica jovem cidadão inglês. A ofensiva diplomática, por outro lado, vem surtindo efeito: embora a decisão da Corte Europeia já tenha mais de um mês, Chalie continua vivo. Os médicos ainda não apertaram os botões para desligar os aparelhos de uma vez por todas.

O drama de Charlie 

Charlie Gard nasceu saudável depois de uma gravidez sem complicações, mas seus pais perceberam, depois de algumas semanas, que o filho não conseguia sustentar a cabeça como outras crianças da sua idade. Ele já estava perdendo o tônus muscular. A doença de Charlie, extremamente rara, ataca o DNA das mitocôndrias, que produzem toda a energia de que o corpo humano precisa, levando à degeneração progressiva de todas as funções corporais. O frio nome técnico da doença é Síndrome da Depleção do DNA Mitocondrial – MDDS, na sigla em inglês. A cepa que ataca o bebê é ainda mais rara, porque destrói também os neurônios. Esse fato viria a ser decisivo na batalha judicial que marca a breve vida de Charlie.

Quando os pais perceberam que seu bebê não estava ganhando peso e sua respiração começou a arrefecer, ele foi examinado e, no dia 11 de outubro de 2016, foi internado no hospital de onde não mais saiu – o Great Ormond Street, referência mundial em pediatria. Charlie começou a sofrer constantes convulsões em dezembro, na mesma época em que Connie, sua mãe, descobriu um procedimento – chamado terapia nucleotídica –,  nos Estados Unidos, que talvez pudesse combater a doença do bebê. Desde logo, ao organizar a campanha para arrecadar fundos, a descoberta foi tratada como um tratamento experimental, embora a situação fosse mais complicada. 

Essa dificuldade não passou despercebida ao primeiro magistrado que analisou o caso, o juiz Francis. Na sentença de 11 de abril deste ano, Francis escreveu: “Em alguns veículos da mídia isso tem sido referido como um ‘tratamento pioneiro’. De fato, esse tipo de tratamento não chegou sequer ao estágio experimental em ratos, quem dirá ter sido testado em humanos com essa cepa particular de MDDS. Na visão de todos aqueles que trataram e analisaram Charlie, daqui e de Barcelona, esse tratamento seria fútil. Com isso quero dizer que ele não teria nenhum efeito e poderia também causar dor, sofrimento e aflição. Essa é a principal questão com a qual tenho de lidar nesse caso”. 

Antes da relação entre os pais e o Great Ormond Street ter degringolado, a mãe do bebê conseguiu colocar em contato com a equipe inglesa o Dr. Michino Hirano, o médico americano que pode tentar tratar o bebê no Hospital Universitário da Universidade de Columbia. Hirano expôs suas impressões aos médicos ingleses, com a ressalva de que não tinha acesso ao prontuário completo da criança, e o Great Ormond Street chegou a considerar a possibilidade de autorizar a transferência do bebê para os EUA. Um procedimento chegou a ser instaurado no comitê de ética. Mas a situação mudou radicalmente em janeiro deste ano. 

As convulsões começaram a atacar Charlie com mais força e os médicos concluíram que os danos cerebrais causados ao bebê já seriam permanentes. Mesmo que o Dr. Hirano pudesse tratar a MDDS de Charlie, a situação do pequeno seria irreversível. Charlie já não poderia mais respirar sem a ajuda de aparelhos e estava praticamente em estado vegetativo. Quando surgiu a divergência entre os pais da criança e os médicos do hospital, a administração hospitalar seguiu a lei britânica e, no final de fevereiro, levou a questão para ser decidida pela Justiça. 

Frederico Singarajah, advogado que atua no Brasil e na Inglaterra, resumiu o quadro em entrevista ao Justiça & Direito. “O Charlie é menor de idade, portanto ainda não tem ‘capacidade jurídica’ para tomar decisões sobre sua própria saúde. O artigo 4 do Mental Capacity Act 2005 impõe um dever para que os médicos ajam no melhor interesse da criança ou qualquer pessoa que não possui capacidade jurídica. O artigo 4(7) demanda que os médicos considerem a decisão dos pais, mas somente como um dos fatores do que consta como o ‘melhor interesse’. O prognóstico é também um fator importante: quais são as chances de sucesso, falha, conveniências de cada um, etc.”, explica o advogado. 

Poder de decisão

Diante de uma disputa com os pais sobre o melhor curso de ação a ser seguido, os médicos não podem decidir sozinhos. “Os médicos não têm o poder jurídico para tomar a decisão do que deve ser feito com o Charlie, mas podem referir a questão para a autoridade pública que faz a gestão do hospital (Area Health Authority), que, em seguida, refere a questão ao tribunal (através de seu departamento jurídico). O tribunal toma a decisão final, que é uma súmula vinculante”, relata Singarajah. 

Quando o caso chegou aos tribunais, a comoção já era grande na Inglaterra. O juiz Francis, na abertura de sua sentença, tomou o cuidado de explicar por que, afinal, ele estava decidindo o destino de Charlie. “Algumas pessoas podem perguntar por que a corte tem um papel nesse processo. Por que os pais não decidem por si mesmos? A resposta é que, embora os pais tenham poder familiar [parental responsibility], o controle derrogatório [overriding control] é investido pela lei aos tribunais no exercício de seu juízo, independente e objetivo, sobre os melhores interesses da criança. O Hospital Great Ormond Street entrou com um processo e é meu dever decidi-lo, já que os pais e o hospital não conseguem concordar quanto ao melhor caminho”, escreveu Francis. 

A decisão do juiz de autorizar o desligamento dos aparelhos e negar a viagem para os Estados Unidos, que seria referendada por todas as instâncias do Judiciário britânico, caiu como uma bomba sobre a opinião pública. Logo se começou a falar que o hospital havia “sequestrado” o pequeno de Charlie de seus pais e que a Justiça havia autorizado os médicos a matarem o bebê. Essa compreensão das coisas, amplificada pelos tabloides ingleses, é incapaz de captar as dificuldades de um caso-limite.

Melhor interesse da criança

A advogada Vitória Nabas, que atua no Brasil e na Inglaterra há 15 anos, cuida de um caso parecido. “Eu tenho uma cliente, uma senhora portuguesa que está internada na Inglaterra e quer ir morrer em Portugal. O hospital negou a transferência, pois os médicos acreditam que ela pode morrer durante a viagem. E ela não pode sair”, relatou em entrevista ao Justiça & Direito. Uma opção para essa senhora seria procurar o Judiciário e convencer um juiz a contrariar os médicos. Seria uma opção para os pais de Charlie também, mas Francis deu razão aos médicos.

O juiz tampouco mandou matar o pequeno Charlie: apenas autorizou que os médicos desliguem os aparelhos e deixem que a morte, inevitável na visão deles, chegue naturalmente. Nem que quisessem o juiz ou os médicos poderiam matar Charlie. “A respeito de desligamentos de aparelhos, o direito inglês permite retenção de tratamento, mas proíbe uma ação positiva que cause a morte. Se for determinado que não há um procedimento clínico ou cirúrgico que adiante, é possível que o melhor interesse seria de desligar os aparelhos”, explica Singarajah. 

Juridicamente, a discussão é simples. O problema é determinar os “melhores interesses” de um bebê na situação crítica de Charlie. Eis como o juiz Francis resumiu seu papel no caso: “Ao tomar essa decisão, o bem-estar da criança é o mais importante e o juiz deve enfrentar a questão do ponto de vista presumido da criança. Há uma presunção forte em favor do curso de ação que prolongará a vida, mas essa presunção não é inafastável. O termo ‘melhor interesse’ abrange questões médicas, emocionais e todas as demais acerca do bem-estar”, escreveu. 

O papel dos pais

Francis também tomou cuidado ao considerar o papel dos pais de Charlie. “Não há dúvidas de que os pais conhecem Charlie imensuravelmente melhor do que qualquer outra pessoa”, escreveu na sentença. “Os pais não aceitam que Charlie esteja tão mal quanto é reportado pelos médicos nesse caso”, acrescentou. Mas Francis também notou que ambos os pais declararam durante o processo que não acreditavam que Charlie deveria continuar a viver se aquela situação fosse permanente. Essa constatação, juntamente à opinião unânime dos médicos de que os danos cerebrais do bebê são mesmo permanentes, pesou muito na decisão final do juiz. 

Os advogados de Connie e Chris enfatizaram que a Justiça britânica nunca tinha autorizado o desligamento de aparelhos vitais “nem mesmo de crianças profundamente doentes com uma qualidade de vida desesperadoramente baixa, quando [houvesse] tratamento que [tivesse] o potencial de melhorar a qualidade de vida”. Mas o juiz Francis, depois de ouvir diversos especialistas, e o próprio médico americano, concluiu que era “um exagero dizer que há um tratamento disponível que possa melhorar a qualidade de vida de Charlie”. 

Ao tribunal, o Dr. Michino Hirano declarou que “como nunca vi [Charlie] e estou do outro lado do Atlântico com acesso a poucas informações, é muito difícil para mim [ter uma opinião conclusiva]. Eu sei quão mal ele está. Eu acho que ele está no estado terminal da doença (...) Eu só gostaria de oferecer o que pudermos. É improvável que funcione, mas a alternativa é que ele morrerá”. 

Diante do fardo de ter de dizer que o que seria melhor para Charlie, descrito pelo próprio juiz como um “triste dever”, Francis decidiu a favor do pleito dos médicos. “Muito tristemente, no caso de Charlie, há consenso, incluindo o de seus pais, que a atual qualidade de vida de Charlie não deve ser sustentada sem esperança de melhora. Eu estou de acordo com a posição [do advogado dos pais] de que o ponto de partida de qualquer consideração acerca do melhor interesse da criança no tratamento que prolonga a vida é uma presunção forte de santidade da vida. Há um consenso entre todos os consultores e médicos que examinaram Charlie de que o tratamento nucleotídico seria fútil”, escreveu na sentença. 

Brasil 

Uma decisão como a de Francis poderia acontecer no Brasil. Segundo Mayta Lobo, professora do UniBrasil e especialista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “o princípio do melhor interesse é princípio internacional expresso na Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente da ONU e que o Brasil trouxe para a Constituição Federal”. A convenção da ONU foi ratificada por 196 países no mundo, mas não pelos Estados Unidos. No Brasil, ela entrou em vigor em 1990, no mesmo ano em que foi aprovado o ECA (Lei 8.069).

“Nesse contexto, crianças e adolescentes surgem na condição de sujeitos de direito e não mais como objeto dos pais ou do Estado. O ‘melhor interesse’ é uma cláusula geral, a base do sistema de proteção integral à criança e ao adolescente: toda decisão, programa ou política pública deve verificar o que atende a esse interesse”, explica Mayta. “Esse interesse é determinado de modo casuístico, no caso concreto: cada criança tem seu contexto, sua família, sua realidade. Situações semelhantes podem ter decisões diferentes, por causa de uma peculiaridade do caso”, completa. 

É esse esforço para tentar analisar as peculiaridades do caso que pode ser visto nos procedimentos do juiz Francis. “Nesse caso, me chamou bastante a atenção que o viés não foi só jurídico, tivemos um olhar interdisciplinar”, diz Mayta. “Não me parece haver nenhuma precariedade ou imaturidade na decisão desse juiz. No caso do Brasil, a ideia de que crianças e adolescentes são sujeitos de direito é muito importante: os pais precisam entender que os filhos não são objeto de sua propriedade”, afirma ainda. 

No Brasil, como na Inglaterra, o poder familiar que os pais têm por natureza não é ilimitado. “Poder familiar é o conjunto de direitos e deveres em regra inerente aos pais biológicos ou adotivos. Mas quando há abuso desses direitos ou descumprimento dos deveres, os pais estão sujeitos às medidas do artigo 129 do ECA e até a perder o poder familiar”, ressalta a professora. “Além disso, quando você é hospitalizado, é preciso a alta médica e a autorização de transferência. Você não pode sair do hospital em casos de risco. Somente por decisão judicial seria possível isso. E na hipótese de um menor em situação crítica, nada impediria que um caso como o de Charlie acontecesse aqui”, completa Mayta. 

Polêmica 

A sentença do juiz Francis despertou um intenso debate na Inglaterra entre filósofos e médicos envolvidos com bioética. Dominic Wilkinson, professor de bioética em Oxford, opinou, em um artigo publicado na revista Lancelet, em maio deste ano, que “tristemente, de modo relutante, médicos e juízes, de fato, às vezes concluem – e com boas razões – que escassas chances de vida nem sempre são preferíveis a morrer. Prover conforto, evitar tratamentos inócuos e dolorosos, dar suporte à criança e à família pelo tempo que resta: às vezes isso é o melhor que a medicina pode fazer e o único curso de ação ético”, escreveu.

Wilkinson resumiu, do ponto de vista moral, a opção legal subjacente ao direito inglês e que tornou possível a decisão de Francis. “Os pais têm uma grande liberdade para criar seus filhos; por exemplo, sobre como alimentá-los, como educá-los e se dão ou não vacina a eles. Os pais nem sempre farão as melhores escolhas, mas, na maior parte das vezes, o Estado não vai interferir ou intervir. No entanto, quando as decisões dos pais criam um risco real de causar sérios danos a seu filho, suas decisões devem ser desafiadas, se necessário nos tribunais”, argumentou em seu texto. 

Julian Savulescu, outro professor de bioética em Oxford, desafiou a posição de seu colega na mesma revista. Savulescu propõe que a chave para se iluminar o papel da decisão em um caso como o de Charlie seja a noção de “desacordo razoável”. Para o filósofo, seria razoável permitir o tratamento nos Estados Unidos e decidir o destino do bebê seis meses mais tarde, por exemplo. “Mas nós podemos também acreditar que seria razoável que os pais de Charlie optassem por abandonar o tratamento experimental e permitir que ele morresse. Portanto, poderia ser razoável tanto dar quanto não dar a Charlie a tentativa de um tratamento. Não precisamos argumentar que o tratamento seja do melhor interesse de Charlie. Basta dizer que não sabemos se a sua vida será do seu melhor interesse e digna de ser vivida”, escreveu. 

Savulescu reconheceu que, diante da incerteza, a decisão de Francis foi razoável, mas que a decisão dos juízes revisores do caso poderia ser tão razoável quanto – e no sentido contrário: eis uma ocasião em que o duplo grau de jurisdição vem cumprir sua função precípua. De fato, Connie e Chris trocaram de advogados e recorreram da decisão de Francis, mas, em 23 de maio, a Corte de Apelação referendou a decisão do juiz de primeiro grau. E por unanimidade. Quatro juízes diligentes, tendo se debruçado sobre uma miríade de evidências e opiniões, decidiram que o melhor interesse de Charlie era mesmo ter a ventilação desligada e não ir para os Estados Unidos, como queriam os médicos desde janeiro. 

Os novos advogados, que atuaram de graça, trouxeram um argumento inédito à segunda instância. Citando um precedente inglês, eles argumentaram que “o tribunal não pode interferir na decisão dos pais no exercício de seus direitos e poderes familiares, no tocante ao tratamento médico de seus filhos, exceto se houver um risco de que o curso de ação proposto pelos pais possa causar um dano significativo”. Na visão dos advogados, se esse fosse o sarrafo do caso, tudo mudaria: a corte não deveria, só porque há uma divergência entre pais e médicos, colocar-se no lugar dos pais para decidir os melhores interesses da criança; o tribunal poderia exercer seu controle derrogatório do poder parental apenas se os pais estivessem causando um grande dano à criança. 

Se os juízes comprassem o argumento da defesa, o caso de Charlie seria o segundo na história da jurisprudência inglesa a encaixar-se no critério do “dano significativo”, proposto pelos advogados dos pais de Charlie, e não no critério do “melhor interesse da criança”. O caso do precedente citado envolvia uma família inglesa que fugira para a Espanha, em 2014, buscando um tratamento alternativo para o câncer de seu filho de cinco anos. Os pais discordavam do procedimento de radioterapia que os médicos propunham. Eles foram presos na Espanha e trazidos de volta para a Inglaterra. No fim das contas, a Justiça britânica acabou referendando a opção dos pais do menino. 

Entretanto, para o relator da apelação, Lord McFarlane, no caso de Charlie não havia duas opções em jogo. Ele referendou, na decisão seguida pelos colegas, que seria um erro tratar o procedimento oferecido nos Estados Unidos como uma opção real a ser considerada. “Postergar a retirada dos aparelhos – o que de outro modo seria aceito como o melhor curso de ação para esta criança –,  a fim de ir para os Estados Unidos receber um tratamento com ‘zero’ chance de melhor sua condição, apenas prolongaria sua existência de uma maneira que todos, infelizmente, concordam que não pode mais ser do seu melhor interesse”, escreveu Lord McFarlane. 

Os pais de Charlie ainda apelariam duas vezes, mas sem sucesso. No dia 8 de junho, a Suprema Corte da Inglaterra rejeitou ouvir as súplicas de Connie e Chris, que apelaram então para a Corte Europeia de Direitos Humanos. A última esperança do casal esvaneceu no dia 27 de junho, quando o tribunal europeu recusou interferir nas decisões inglesas. A corte considerou que as decisões das três instâncias da Justiça britânica foram “meticulosas”, bem fundamentadas, que diversas fontes médicas foram ouvidas e que os tribunais ingleses fizeram bem ao concluir que “Charlie estava provavelmente exposto a dores, sofrimento e aflições contínuos e que ser submetido a um tratamento experimental sem prognóstico de sucesso não traria nenhum benefício e continuaria a causar dano a ele”. 

Futuro 

Charlie ainda está vivo. Seus aparelhos não foram desligados. Depois da decisão da Corte Europeia, o caso ganhou repercussão internacional e uma onda de indignação alastrou-se no mundo todo. O Papa Francisco e Donald Trump manifestaram apoio à família de Charlie no Twitter no dia 03 de julho. O hospital pediátrico Bambino Gesù, depois da manifestação do Papa, ofereceu-se para receber o bebê no Vaticano, mas a oferta não seguiu adiante por “questões legais”.

Na terça-feira (18), uma Comissão da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou uma emenda a um projeto de lei para conceder cidadania ao pequeno Charlie e a seus pais, para que eles possam ir buscar o tratamento no país. Entretanto, nenhum dos especialistas consultados pela reportagem vê como essa medida, se aprovada, poderia mudar a situação jurídica do bebê na Inglaterra, a não ser que uma nova decisão judicial seja proferida. Por enquanto, a ofensiva diplomática tem funcionado. 

A pedido do próprio Hospital Great Ormond Street, o juiz Francis já tinha reaberto o processo no último 10 de julho para que os pais de Charlie pudessem produzir novas provas sobre o tratamento disponível nos Estados Unidos. O pedido do hospital veio depois da manifestação dos médicos do Vaticano. De acordo com informações do jornal The Guardian, Francis declarou, na audiência, que ficaria muito feliz em mudar sua decisão de abril, caso novas evidências fossem apresentadas, mas que “tem de decidir o caso não com base em tweets, nem com base no que poderia ser dito na imprensa”. Na última segunda-feira (17), o Dr. Michio Hirano, acompanhado por um médico italiano, finalmente pode examinar Charlie pessoalmente. Ele foi recebido pelos médicos que cuidam do bebê, cuja situação foi discutida por mais de quatro horas, segundo relatos da mídia britânica.

Onde e quando quer que o drama de Charlie termine, a persistência da controvérsia confirma a existência do que Julian Savulescu chamou de “desacordo razoável”. Quatro juízes decidiram que o razoável, nesse caso, é dar razão aos médicos. Meio mundo discorda da decisão. Se os juízes fossem diferentes, a decisão poderia ser outra e atender aos anseios dos pais de Charlie. Casos de vida e morte levam o direito e as leis ao limites do que é ser humano – e expõem o fosso que às vezes há entre o senso de moralidade comum e o que pode ser declarado legal.

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