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Mulher carrega pão fresco para o almoço em Amadiya, no Iraque, na província semi-autônoma do Curdistão, 4 de novembro de 2017. | Maurício Lima/
The New York Times
Mulher carrega pão fresco para o almoço em Amadiya, no Iraque, na província semi-autônoma do Curdistão, 4 de novembro de 2017.| Foto: Maurício Lima/ The New York Times

Esta cidade que já foi um cartão postal, em um planalto a 1,219 metros de altitude, entre duas cordilheiras muito mais altas, tem uma localização ruim quando se trata de tolerância. 

Assim, o mistério da figura sagrada judaica Hazana, reverenciada aqui por pessoas de todas as religiões locais, é ainda mais profundo do que seria de outra forma. 

Amadiya está na província semiautônoma do Curdistão, que vive sob a repressão de Bagdá depois de sua tentativa de independência. Esta região no norte do Iraque foi convulsionada pela violência desde o avanço do Estado Islâmico, que fez os cristãos fugirem, escravizou mulheres yazidi e matou xiitas à luz do dia, até serem finalmente varridos da área. 

Hoje, a população de nove mil habitantes da Amadiya é predominantemente muçulmana curda. Mas, no início do século XX, a população era de cerca de dois terços do que é hoje, dividida igualmente entre muçulmanos, cristãos e judeus – embora existissem 10 mesquitas e apenas duas igrejas e duas sinagogas. Todos juntos em um raio de 2,4 quilômetros. 

Todos os judeus de Amadiya partiram após a criação de Israel em 1948. E tantos cristãos partiram em meio a sucessivas revoltas regionais que as 20 ou 30 famílias restantes não conseguem mais sustentar as duas igrejas. 

As três religiões aqui são unidas pela reverência antiga a Hazana, uma figura religiosa judaica da antiguidade ainda desconhecida – descrita como um filho de Davi, o neto de José ou apenas um profeta pouco conhecido – cujo túmulo fica em Amadiya. 

"Todas as religiões vão a esse túmulo para orar", disse Muhammad Abdullah, professor local e historiador amador

"Para as três, é um lugar sagrado. Cada uma acredita deter sua posse." 

Moradores de Amadiya, no Iraque, se reúnem para as orações do meio-dia, 3 de novembro de 2017. MAURICIO LIMA/ NYT

Nem o Google resolve

A biografia de Hazana é tão nebulosa que acaba derrotando uma busca do Google. Os habitantes locais não têm muito para acrescentar. Ele era "um cara realmente grande, uma pessoa pura", disse Bzhar Ahmad, 55, funcionário público aposentado que acabava de sair das preces do meio-dia na Grande Mesquita Amadi, enquanto um grupo de muçulmanos concordava acenando com a cabeça. 

Nenhum dos homens achava estranho que muçulmanos e cristãos também orassem no túmulo de Hazana. 

"Os judeus sempre foram nossos amigos. Não pensávamos sobre o que éramos; éramos apenas pessoas vivendo juntas", disse Ahmad. 

As direções dadas pelos habitantes locais para encontrar o túmulo de Hazana variaram, mas todos acabaram em um caminho torto, estreito o suficiente para que, nos tempos áureos de Amadiya, houvesse passarelas ligando telhados de um lado a outro para que os moradores pudessem usar as lajes para chegar à mesquita, evitando os visitantes nas ruas superlotadas abaixo. Ou, pelo menos, é o que dizem. 

No caminho, em frente a um galinheiro com um telhado adornado com vasos de flores, Saran Sabah estava com sua filha de 18 anos, Amal. No beco lateral que levava à sua casa, havia uma enorme pilha de lenha, pronta para o próximo inverno. Sabah, que é muçulmana sunita, havia orado a Hazana, e funcionou, disse ela; lá estava a filha para provar. 

Os homens não haviam mencionado que Hazana era popular pela capacidade de trazer fertilidade aos suplicantes, mas depois confirmaram. Borhan Said, residente muçulmano e funcionário público aposentado, disse que as pessoas também pedem outras coisas. "Ele era um homem religioso claro e devoto", disse ele.

Chegava a parecer que eles haviam se conhecido, mas Said nem tinha certeza da época em que Hazana viveu. "Ele viveu antes do pai do meu pai, é tudo o que sei", afirmou. 

O túmulo de Hazana, figura religiosa judaica da antiguidade, em Amadiya, no Iraque. Embora a população de Amadiya hoje seja esmagadoramente muçulmana, esta cidade na província semi-autônoma do Curdistão era lar parte de muitos judeus e cristãos. Além disso, as três religiões compartilharam uma reverência de longa data para Hazana.Maurício Lima/ The New York Times

Said apontou o portão comum de metal vermelho que disse ser da antiga sinagoga, destrancado e desprotegido, e garantiu que os visitantes eram bem-vindos. Dentro, havia um jardim mal cuidado, mas bem regado, de figueiras e romãs, trepadeiras e hibiscos. Os panos de oração roxos e azuis, usados por aqueles que vinham pedir a ajuda de Hazana, estavam pendurados em alguns arbustos. 

Aqui e ali, havia montes de escombros, blocos de pedra e paredes em ruínas – os restos da sinagoga. Uma escada de pedra abria uma fenda na terra que levava a uma tumba subterrânea. 

As paredes do túmulo exibiam alguns grafites recentes escritos em hebraico, os versos de uma música religiosa, juntamente com um emoji sorridente, além de uma Estrela de Davi esboçada sobre o sarcófago retangular simples de Hazana. 

O que explica a tolerância comunal da cidade, as pessoas dizem não saber, exceto que sempre foi assim. "Nós crescemos assim. Meu pai sempre me ensinou a ser assim e ensino o mesmo a meu filho", contou Said. 

Em parte, a cidade se beneficia do seu isolamento; mesmo quando os curdos entraram em uma guerra civil de 1994 a 1997, as batalhas nunca chegaram aqui, embora ambas as facções estivessem presentes. 

Homem caminha para casa depois das preces do meio-diaMAURICIO LIMA/ NYT

Templo romano, sinagoga, igreja e mesquita

Alguns atribuem a tolerância à história de Amadiya. Tome a Grande Mesquita de Amadi como exemplo, a maior e mais antiga das 10 mesquitas da cidade. Especula-se que, originalmente, fosse um templo onde os antigos romanos cultuavam Mitra. Depois, dizem os moradores, virou uma sinagoga, e assim permaneceu durante séculos antes de se tornar uma igreja cristã por mais centenas de anos e, finalmente, após a chegada do islamismo há 800 anos, uma mesquita. 

O quanto disso é realmente verdade é discutível; Amadiya é uma cidade tão isolada que parece não ter sido muito estudada. 

Seria fácil dizer que parte do segredo da harmonia de Amadiya é simplesmente que a maioria das outras religiões deixou a cidade, embora alguns judeus a tenham visitado recentemente para ajudar a restaurar o túmulo de Hazana e orar. 

Mas seus habitantes insistem que seria injusto. Nafae Paulis é o zelador da igreja Caldeia e veterano das Forças Especiais Curdas Peshmerga que agora está aposentado após anos de luta contra o Estado Islâmico. Ele falou como se as outras religiões ainda estivessem presentes nos números de antes. 

"Essa é a beleza de Amadiya. Neste lugar pequeno você pode encontrar muçulmanos, judeus, cristãos", disse ele. 

Mesmo que não seja verdade, é um sentimento agradável. 

Hotel abandonado em Amadiya, no Iraque, 4 de novembro de 2017. Embora a população de Amadiya hoje seja esmagadoramente muçulmana, a cidade já abrigou muitos judeus e cristãos, e as três religiões compartilharam uma reverência de longa data para Hazana, figura religiosa judaica cujo túmulo está na cidade. MAURICIO LIMA/ NYT
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