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"As únicas pessoas para mim são os loucos, aquelas pes­­soas loucas para viver, loucas para conversar, loucas para se salvar, desejando tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam ou dizem ba­­nalidades, mas queimam, quei­­mam, queimam como fabulosos fogos de artifício amarelos explodindo como aranhas através das estrelas e, no meio de tudo aquilo, vo­­cê vê a luz azul central ex­­plodir e todo mundo grita ‘Awww!’"

Jack Kerouac, On the Road

Amy Winehouse era uma dessas loucas beatniks de Kerouac, que queimam como "Roman candles" – fogos de artifício. Existe também a expressão "to burn the candle at both ends" – queimar a vela pelas duas pontas, entregar-se sem limites a uma atividade louca. Tudo isso tem a ver com Amy.

No plano objetivo, tudo foi dito ou escrito sobre ela: a jovem descontrolada e autodestrutiva que jogou fora seu potencial de fazer as pessoas felizes com sua arte. O sucesso conquistado com suor e sofrimento foi comprometido pela imaturidade emocional. Seus últimos shows se tornaram espetáculos previsíveis de autodegradação e o público ia à arena para ver sangue. Vejam no YouTube o fiasco em Belgrado, há um mês, que obrigou Amy a mais um internamento para de­­sintoxicação, que ela abandonou pouco depois.

Este não foi um bom ano para Amy Winehouse. A começar pelas primeiras apresentações, em janeiro, na turnê brasileira. No dia 11 de janeiro, com o pé quebrado, ar­­rastei-me para a Arena do HSBC, a 20 quilômetros da minha casa em Botafogo. Não (ou)vi a Amy que queria ver, mas nos shows do Brasil ela ainda conseguiu segurar a barra. Continuou, cumprindo sua agenda de shows precariamente, como um equilibrista bêbado na corda bamba sem rede de proteção.

Amy Winehouse entrou na minha vida meio clandestinamente. Um dia topei com um "Round Midnight" de Thelonious Monk cantado por ela numa levada funk, coisa esquisita para ouvidos jazzísticos, mas com uma energia incrível, que me chamou a atenção. Tempos depois, eu queria tocar para uma amiga — no saxofone, pelo telefone – "Someone to Watch Over Me", mas não lembrava a introdução. Esta canção dos Gershwin inspirou até um filme homônimo de Ridley Scott. E Frank Si­­natra a cantou a poucos me­­tros de mim, quando desceu do palco para o gramado do Maracanã no lendário show de 1980. Recorri então ao YouTube e me surpreendi com uma insólita "Ella Fitzgerald co­­ver" de "Someone to Watch Over Me", cantada por Amy Wine­­hou­­se, com direito a introdução e tudo. Comecei a desconfiar, en­­tão, que a bad girl, "deformadora de opinião" da juventude dos anos 00, era basicamente uma cantora de jazz.

Saltando de clipe em clipe, eu a ouvi interpretando sacrossantos standards das mais consagradas divas, como "The­­re Is No Greater Love", "Tenderly", reciclando hits do soul como "I Heard It Through The Grapevine", de Marvin Gaye, invadindo a praia dos originals do jazz em "Round Midnight", de Thelonious Monk, e "Moody’s Mood for Love", do saxofonista James Moody. E enriquecendo o repertório com músicas suas, como "Love Is a Losing Game", "Tears Dry on Their Own" e a autobiográfica "Rehab", registro da batalha perdida das clínicas de desintoxicação. Sua persona de palco única – cabelões em colméia, tatuagens e piercings, peitões de vamp e perninhas anoréxicas – estava a serviço de uma música poderosa e instigante: uma mistura de jazz, soul e hip hop, projetada por um vozeirão anasalado próximo do desespero. Conforme postou um fã na internet, "ela irradia vulnerabilidade o tempo todo – parece cantar à beira do abismo, é a beleza absoluta do artista genuíno".

Nos noticiários de sua morte, vejo a imagem fria de três homens de terno preto com um corpo numa padiola coberto de pano púrpura (parece um quadro clássico, a descida de Cristo da Cruz, reparem), os vampiros da desgraça humana sorverão cada gota do noticiário sobre a autópsia, o laudo pericial. Quem chamou a emergência? Afinal, Amy estava sozinha em casa – toda uma montanha de detalhes que nada acrescentará ao todo.

Amy, Janis, Jimi, Jim, Kurt – escolheram a autodestruição ou a autodestruição os escolheu?

Vejo Amy Winehouse como uma replicante de Blade Runner, baseado na história de Philip K. Dick, Andróides sonham com carneiros elétricos? Em que o fu­­gitivo das galáxias diz: "Meus olhos viram coisas que vocês não acreditariam". Amy não só viu mas ouvia essas coisas. Num plano mais singelo e afetivo, volto a pensar em Amy cantando "Some­­o­­ne to Watch Over Me": I’m a little lamb/Who’s lost in the wood/I know I could/Always be good/To one who’ll watch over me (Sou um carneirinho/perdido na mata/Eu sei que poderia/Sempre ser boa/para al­­guém/Que cuidasse de mim).

Infelizmente, não apareceu ninguém para cuidar de Amy Wi­­nehouse.

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