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Noventa cidades da Índia, o segundo país mais populoso do mundo, sofrem com problemas crônicos de falta de água | SAUMYA KHANDELWAL/NYT
Noventa cidades da Índia, o segundo país mais populoso do mundo, sofrem com problemas crônicos de falta de água| Foto: SAUMYA KHANDELWAL/NYT

Os habitantes de Shimla (Norte da Índia) não concordam em muitas coisas ultimamente. Uma seca na cidade himalaia faz seus moradores responsabilizarem os fazendeiros e a indústria do turismo pelo esgotamento das fontes de água. 

E todos estão zangados com os homens-chave. A decrépita rede de distribuição de água de Shimla, construída sob o domínio colonial britânico há mais de 70 anos, depende dos funcionários públicos conhecidos por esse nome para abrir e fechar as válvulas que abastecem cada bairro. A escassez atual, que em maio deixou casas sem água por 20 dias, gerou uma grande revolta contra eles, acusados, em quase todos os bairros, de privá-los de sua justa cota; foi preciso que uma corte lhes requisitasse proteção policial. 

 "Eu estava recebendo telefonemas raivosos no meio da madrugada, e me chamavam de tudo, estúpido, inútil. Era cercado por dezenas de pessoas quando tentava sair de casa para ir trabalhar", disse Inder Singh, 44 anos, que é homem-chave há 24, enquanto inseria sua chave – uma peça de cerca de um metro – no chão para abrir uma válvula. 

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 O turismo é o pilar da economia nesta cidade montanhosa, a capital de verão das autoridades coloniais britânicas, que iam paralcá fugindo do calor brutal de Nova Déli, mas a seca, acompanhada de temperaturas extraordinariamente altas, está tão severa que, em maio, alguns moradores foram ao Twitter para pedir aos turistas que ficassem longe e deixassem a água para os habitantes. Muitos em Shimla consideram esta a pior estiagem que já viram. 

 Cerca de 30% das reservas nos hotéis da cidade foram canceladas desde maio por causa da falta d'água, segundo Sanjay Sood, presidente da associação de hotéis e restaurantes do norte da Índia. Algumas foram canceladas por turistas, outras pelos próprios estabelecimentos. 

 Inúmeras caixas d'água foram instaladas em hotéis ao longo das estradas das montanhas de Shimla. Uma frase em uma delas diz: "Se há água, há amanhã". 

 Pior crise hídrica da história

Um relatório do governo divulgado em junho disse que a Índia estava enfrentando a pior crise hídrica de sua história, ameaçando milhões de vidas. Cerca de 600 milhões de indianos, cerca de metade da população, enfrentam condições extremas de escassez, com quase 200 mil morrendo todos os anos devido ao acesso inadequado à água potável, segundo o relatório. Até 2030, é possível que a demanda do país por água seja o dobro da oferta disponível. 

 Em Shimla, as temperaturas anuais crescentes e a diminuição das chuvas e do degelo, principais fontes de água da cidade, foram fatores importantes na crise.  "Há aquecimento global em toda a Índia, e Shimla não é exceção", disse Chawdhry, chefe da secretaria do estado de Himachal Pradesh.

 Mas o antigo sistema de canalização daqui também deixa vazar cinco milhões litros de água todos os dias, afirmou ele, em uma entrevista em seu escritório. A US$105 milhões, a reforma do sistema apoiada pelo Banco Mundial, incluindo uma tubulação que retiraria água de um rio nas proximidades, está programada para ser concluída em 2023. 

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 A tensão sobre o abastecimento aumenta muito durante a temporada turística do verão, quando a população de Shimla essencialmente dobra. Nesses meses, segundo Chawdhry, a cidade normalmente precisa de 45 milhões de litros por dia. Ele disse que o suprimento diário atual estava em 31 milhões litros, e no auge da crise em maio não passou de 22 milhões. 

 Ela não é a única cidade cujos suprimentos de água estão sob pressão crescente; no ano passado a Índia foi o quarto país mais quente desde que começaram os registros em 1901, com a precipitação quase 6% menor que a de 2016, de acordo com o Ministério de Ciências da Terra da Índia. 

 "E muitos centros têm sistemas de distribuição desatualizados. O país também ficou aquém das medidas de conservação, como a captação de chuva e de neve derretida", afirmou Rajendra Singh, o fundador e presidente do grupo de conservação Tarun Bharat Sangh. 

Muita tensão

 "Há cerca de 90 cidades na Índia passando por uma crise hídrica. Elas a enfrentam hoje, amanhã e no dia seguinte. Shimla recebe maior atenção da mídia, mas muitas áreas estão sofrendo com a escassez de água", disse Singh.  A capital, Nova Déli, está incluída nesse grupo. Este ano, no bairro de Wazirpur, cronicamente carente, um homem e seu filho morreram depois que uma briga começou entre as pessoas esperando na fila de um caminhão-pipa. 

 No calor extenuante de março, Rahul Kumar, de 18 anos, foi fatalmente ferido na luta, que começou quando um vizinho acusou a ele e a seu irmão de furar a fila. Seu pai, Lal Bahadur, 60 anos, morreu de um ataque cardíaco ao tentar intervir, disseram as autoridades. 

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 A mãe de Kumar, Sushila Devi, contou que Wazirpur começou a ficar sem água em janeiro, mais cedo que normal. Outros moradores disseram que nos raros casos em que a água sai da torneira, ela vem suja e não é potável. "Meu marido e meu filho morreram por causa da água", disse Devi. 

 Recentemente, em uma tarde quente em Wazirpur, os vizinhos fizeram fila outra vez, com os jarros vazios, esperando pelo caminhão-pipa do governo. Desta vez, quando o veículo chegou, um homem mais velho orientou a multidão para se certificar que houvesse ordem. "Presto um serviço público. Depois da briga, nos reunimos no bairro e elaboramos este sistema de filas", disse ele. Mas ainda houve momentos de tensão. "Por que seu jarro é tão grande? É grande demais!", gritou uma mulher para outra. "Não é", a outra revidou. 

Medidas de segurança

 Em Shimla, a crise da água arrefeceu desde maio. Funcionários municipais dividiram a cidade em três zonas no final de maio, distribuindo a água em uma base rotativa, de modo que ninguém ficaria sem por mais de dois dias. Os moradores reclamaram que a cidade demorou muito para agir, mas no geral, as tensões diminuíram. 

 "Namashkar!", gritaram de suas varandas os moradores alegremente para Singh, o homem-chave, que fazia sua ronda recentemente. Ele retribuiu a saudação tradicional, mas disse que nem sempre eram simpáticos. 

 Contou que foi amaldiçoado e xingado durante os piores dias da crise, mas nunca atacado fisicamente. Mas alguns dos outros 61 foram pegos pela multidão e obrigados a manter a água aberta, disseram os funcionários municipais. 

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 O pandemônio fez com que o alto tribunal de Shimla tomasse uma atitude. O órgão ordenou que os homens-chave fossem supervisionados para garantir que não dariam tratamento preferencial para hotéis ou pessoas importantes. "Ele não só detém a chave, mas, dada a força que tem, pode deixar a cidade inteira à sua mercê", disse o tribunal em sua decisão de maio. 

 O tribunal também ordenou que todos os homens-chave fossem escoltados por dois policiais quando estivessem trabalhando, para garantir sua segurança. Alguns deles, cercados por uma verdadeira comitiva, disseram que nunca na vida haviam se sentido tão importantes. 

 

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