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Santiago – Os dias que se seguiram à morte de Augusto Pinochet presenciaram uma Santiago de ruas barulhentas e um Palácio La Moneda em silêncio cauteloso. A presidente Michelle Bachelet decretou que não haveria sepultamento de chefe-de-Estado e que não compareceria aos ritos fúnebres. Pode-se imaginar que ela tenha reagido como herdeira política de Salvador Allende, o socialista apeado do poder no golpe liderado por Pinochet, em 1973. Mas um livro abre outra fresta de compreensão: Michelle agiu como herdeira moral de seu pai.

Há três meses livrarias chilenas receberam "Las Cartas del General Bachelet", pequeno volume organizado por duas jornalistas, Maria Elena Wood e María Luisa Claro, com cartas e bilhetes guardados por Angela Jeria, mulher de Alberto Bachelet – pai de Michelle, general-do-ar e membro de uma família da elite militar chilena.

Qualquer semelhança entre Alberto Bachelet e Augusto Pinochet pára na origem francesa dos sobrenomes. Bachelet veste a biografia de um oficial bem preparado, homem de cultura, especialista em assuntos estratégicos. Pinochet, até virar ditador, era um oficial apagado, carreirista, conhecido bajulador no meio militar.

A antropóloga Angela Jeria cedeu aos apelos das jornalistas e acabou entregando-lhes o precioso acervo, guardado desde a morte do marido, ocorrida menos de um ano depois do golpe. A primeira carta documenta a ruptura de Alberto Bachelet com as Forças Armadas, no dia do golpe.

O general Bachelet cumpria sua função na secretaria responsável pela distribuição de alimentos no país convulsionado por racionamentos, quando foi informado do cerco ao La Moneda, na manhã de 11 de setembro de 1973. Escutando os vôos demolidores dos Hawker Hunter sobre o palácio, escreveu a carta de renúncia às Forças Armadas: "Rogo ao senhor comandante aceitar minha renúncia depois de haver cumprido mais de 30 anos de serviço na instituição.".

Em casa, convocou a mulher e a filha, Michelle, então estudante de medicina, a empacotar a mudança. Não queria mais o carro oficial nem a casa cedida pela Força Aérea. Deu graças a Deus que seu filho, Alberto, Betingo para os íntimos, estava vivendo na Austrália com mulher e filhos.

Três dias depois, em 14 de setembro, foram buscá-lo para uma "reunião" no Ministério da Defesa. A família só receberia um bilhete, endereçado a Angela, a quem o general chamava de Gelucha.

A família seria avisada de que Alberto estava detido na Base Aérea de Colina, junto com outros oficiais. Passados alguns dias outra informação: o general, que era cardíaco, sofrera uma isquemia e estava internado num hospital militar. De lá escreveu um bilhete para Michelle, que completava 22 anos: "Mica, não poderei cantar ‘Parabéns’. Não poderei te abraçar, beijar nem te entregar um presente. Não poderei te convidar para comer nos chineses. Mas te desejo um montão de felicidades, outro montão de abraços e beijos, com o carinho e o amor de teu pai, que sempre se lembra de ti, onde quer que esteja."

Foram 26 dias de torturas físicas e psicológicas.

A família Bachelet vivia sob vigilância. Muitos eram os amigos e parentes presos. Alberto, então, já nem saía de casa.

Em 18 de dezembro de 1973, Alberto escreveu um rascunho à mão e não houve tempo para datilografar o documento. Foi novamente preso, desta vez levado para a Prisão Pública de Santiago, onde ficaria até 12 de março de 1974. Viveu um tempo de tristeza aguda, expressa em desenhos da prisão e relevos feitos em folhas de cobre.

O general virara artesão. Dentre as cartas que escreveria nesse período, uma delas foi endereçada à tia Olga, que vivia nos Estados Unidos, na qual Alberto levantava a hipótese de emigrar com a família, assim que o libertassem.

Em janeiro de 1974, outra internação. Aproveitou os dias no hospital para escrever um de seus melhores textos. Na verdade, uma autocrítica militar. Ele, que sempre fizera parte da "nata" do oficialato, descobriu na prisão como companheiros de menor patente poderiam ser homens de grande estatura moral. "A disciplina, como princípio, é fundamental nas Forças Armadas, mas deve adequar-se ao século em que vivemos. O cárcere tem o dom de nivelar os homens. Tardiamente descobri isso. E, lamentavelmente, em lugar indesejado. Mas, aprendi."

Alberto voltou para a galeria 2. Deprimido. Sem esperança. Escreveu então para Angela: "Tuas cartas, Mami, são maravilhosas. Eu as leio mil vezes porque elas apagam o amargor que sinto agora..."

Em 11 de março de 1974 Angela foi até à prisão a pretexto de buscar as roupas sujas do marido. Escondido na dobra da gola de uma camisa, o derradeiro bilhete: "Imundície, mais imundície...Tentam me envolver em coisas... Não acredite em nada do que digam. Estive submetido ao abrandamento."

Ablandamiento, em espanhol. Vem de abrandar, relaxar, "amolecer" para confessar. Torturar. Foram tão "brandos" que Alberto infartou outra vez, buscando abrigo na morte, no dia seguinte. Angela e Michelle tiveram de deixar o Chile.

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