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Como é a bilionária “Disney do comunismo” construída na China
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A cena é corriqueira em parques temáticos: um menino é fotografado pela mãe, imitando a pose de um boneco atrás de si. Crianças brincam de tiro ao alvo com seus pais, enquanto telas gigantes no ambiente exibem filmes de combates. Longe de personagens dos cinemas ou dos quadrinhos, no entanto, os heróis aqui são Mao Tsé-Tung e seus companheiros.

Para presentear o Partido Comunista Chinês em seu centenário, o Grupo Wanda investiu cerca de 12 bilhões de yuans (1,54 bilhão de euros) na inauguração de um complexo turístico com tema revolucionário comunista, em junho do ano passado, na cidade de Yan’an. Ponto de chegada da Longa Marcha – como ficaram conhecidos os mais de 10 mil quilômetros empreendidos pelo Exército Vermelho chinês entre 1934 e 1935 –, o lugar é uma espécie de “solo sagrado” para o partido.

Com área total de 2,7 quilômetros quadrados, a Yan’an Wanda City conta com uma rua vermelha de 1,5 quilômetro de extensão, parque temático militar, lojas, restaurantes, galerias, hotéis, um teatro e um lago, além de outras atrações para turistas. O objetivo, segundo a incorporadora, é criar uma nova experiência do chamado turismo vermelho, por meio da integração da alta tecnologia com a temática revolucionária.

Os visitantes podem comprar souvenires e artesanato local, provar pratos da culinária tradicional, além de aproveitar entretenimento temático, como a primeira versão em dança no gelo da ópera chinesa “A Garota de Cabelos Brancos”, um dos clássicos da China revolucionária. Para o cenário, foi construído um megalago de gelo artificial, capaz de perdurar ao longo das estações.

“É um projeto de turismo cultural abrangente de última geração. Os visitantes podem receber educação patriótica, experimentar costumes populares e desfrutar de férias relaxantes”, afirmou o presidente do Grupo Wanda, Wang Jianlin, em discurso na cerimônia de fundação da Yan’an Wanda City, em abril de 2019.

Com o objetivo de funcionar como um “resort de férias”, o complexo conta com o luxuoso Wanda Realm Yan'an. O hotel tem vista panorâmica para o lago e localização estratégica (a 20 minutos do aeroporto), oferecendo aos hóspedes salões de banquetes e de conferências (que, inclusive, podem ocorrer em gramados ao ar livre), além de espaços de entretenimento e ginástica.

São 178 quartos – alguns deles, em estilo caverna, permitindo vivenciar a cultura local – com diárias que variam de 428 a 12.888 yuans (algo entre 61 e 1.843 euros). Este último, um apartamento de 196 metros, com vista para uma paisagem paradisíaca. “O hotel cinco estrelas planejado preencherá o vazio de que não havia hotel de férias de luxo em Yan'an”, disse Wang Jianlin na inauguração do projeto.

A expectativa é que a Yan’an Wanda City receba mais de 10 milhões de visitas por ano, criando em torno de 10 mil postos de trabalho. “Isso melhorará bastante a economia local e impulsionará sua transição, criando novas frentes para o crescimento econômico”, apostou Wang, à época. O salário mínimo na província de Shaanxi é de 1.950 yuans (em torno de 279 euros).

O jornal China Daily, comandado pelo Partido Comunista do país, afirmou que a inauguração da rua vermelha, em 12 de junho passado, superou a expectativa de público, alcançando a marca de 260 mil turistas. “Evocou, como o nome indica, outro tempo com seus espaços e atmosfera. A rua se agitava com uma memória coletiva envolta em cultura vermelha. Telhas cinzentas, beirais inclinados e paredes de barro amarelo lembravam uma terra do passado”, dizia o texto.

Ascensão

De acordo com a 4ª Pesquisa de Sentimento do Viajante Chinês, divulgada pela Dragon Trail em setembro, 12% dos chineses se declararam interessados no chamado turismo vermelho como destino para as próximas férias. Natureza (74%), viagens a praias e ilhas (56%), parques temáticos, aquáticos e zoológicos (51%) e turismo cultural (44%) aparecem como os temas mais citados entre os ouvidos pela pesquisa.

“Em 2020, o número de turistas vermelhos ultrapassou 100 milhões e contribuiu para 11% das viagens domésticas. Isso é bastante fenomenal”, analisou, para a CNN, a professora associada da Universidade Politécnica de Hong Kong e especialista em política de turismo chinesa Mimi Li.

O professor de Direito Internacional e coordenador do Núcleo de Estudos China-Brasil da FGV Direito Rio, Evandro Menezes de Carvalho, explica que o povo chinês gosta muito de viajar, sendo responsável por uma fatia significativa do turismo mundial.

Na opinião do especialista, o contexto da pandemia e de uma guerra comercial mais intensa desde o governo Trump, que tem conduzido a China a um cenário internacional de mais protecionismo, favorece a criação de atrativos domésticos, como o complexo vermelho do Wanda.

“O chinês que viajava pelo mundo, com recursos, fica impedido. Há uma demanda represada, um potencial grande de oferecer alternativas ao turismo interno, que já era intenso. Nesse movimento de olhar mais para dentro de três anos para cá, que a pandemia agrava e a guerra aprofunda, o mercado interno passa a ser atrativo. A China tem 400 milhões de pessoas na faixa de renda da classe média e, até 2035, a meta é dobrar isso. Há um mercado impressionante a ser explorado”, projeta.

Turismo de experiência

Uma reportagem publicada no site do Grupo Wanda afirma que, até 12 de julho de 2021, a rua vermelha de Yan'an “quebrou o recorde de 2 milhões de visitantes em um mês após a abertura. Entre eles, a geração pós-80, pós-90 e pós-00 respondeu por mais de 50% do fluxo de passageiros”.

Na matéria, o reitor do Instituto de Pesquisa de Turismo da China, Dai Bin, exaltou o empreendimento como um marco na inovação do turismo vermelho, preenchendo uma lacuna de oferecer experiências aos visitantes.

"No passado, quando eu fui para Yan'an, eu poderia ter visto algumas cavernas, uma mesa e uma cadeira. Agora existem locais revolucionários tradicionais, como Yangjialing, e projetos inovadores, como a rua vermelha de Yan'an, que incluem interações como artes cênicas imersivas, tecnologia inteligente etc. Experiência. Os visitantes podem não apenas assistir à exposição, mas também permanecer e participar da interação”, comemorou.

No parque temático de Yan’an, visitantes passam por experiências que mexem com seus sentidos, como a aproximação de atores que recriam as dificuldades enfrentadas pelos comunistas ao fugir do exército nacionalista.

“Na China, há apenas uma história da origem, e ela não está em debate. Está no centro da propaganda. É vital para o partido que as pessoas sintam uma conexão emocional com essa história, e você só vai conseguir isso no local em que ela ocorreu”, analisou o membro sênior do Instituto Lowy, na Austrália, e especialista em política chinesa, Richard McGregor, para o jornal O Globo.

O professor Evandro de Carvalho pondera que o empreendimento une o tino empresarial do bilionário Wang Jianlin com um contexto de agradar o Partido Comunista. Para ele, embora o parque seja símbolo de um esforço atual do partido de posicionar sua própria narrativa histórica, também é resposta a um crescente orgulho da cultura tradicional chinesa entre os mais jovens. Assim, na visão dele, mais que ode ao comunismo, o empreendimento seria uma oportunidade de negócio em um cenário de “rejuvenescimento da China”.

“Valores como respeito à hierarquia e um líder forte não foram inventados pelo Partido Comunista. Mao Tsé-Tung, inclusive, combatia aspectos tradicionais da cultura da China, que ele via como uma das causas da passividade chinesa. Ele atacava, por exemplo, a piedade filial do confucionismo, incitando a denunciar qualquer contrarrevolucionário, não interessava se era seu pai. Com a morte dele, pouco a pouco esses elementos tradicionais tomam seu espaço”, analisa Carvalho.

O PhD em Ciências Sociais e Políticas e gestor acadêmico do Ibmec Brasília, Ricardo Caichiolo, que estudou as relações entre Brasil e China em seu mestrado em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), concorda que investimentos assim servem aos interesses do governo chinês de duas formas: ao gerar receita, a partir do fomento ao turismo doméstico, e ao promover o legado revolucionário, sobretudo entre os jovens.

“O parque vem a reboque da comemoração do Partido Comunista Chinês, estimulando os jovens a visitar locais históricos, para que entendam o legado revolucionário. Esse é um tipo de visitação que envolve recuperação da história e da parte cultural do país. O pensamento chinês é muito voltado à questão da cultura, da conciliação, e essas visitas servem para mostrar a evolução da China desde a sua criação, em 1949 [ano da fundação da República Popular da China]”, diz.

Parceria

Em seu discurso de apresentação do projeto, em 2019, Wang Jianlin afirmou que “a marca de turismo vermelho é construída em conjunto pelo Wanda Group e pela cidade de Yan'an para o centenário do Partido Comunista Chinês”.

O Esboço do Plano Nacional de Desenvolvimento do Turismo Vermelho 2004-2010 prevê o mecanismo de mercado e medidas flexíveis “para incentivar a sociedade a participar do desenvolvimento e operação do turismo vermelho”, segundo o site do Grupo Wanda. Na opinião de Dai Bin, o modelo favoreceria “o equilíbrio entre a orientação governamental e a participação social”.

O conglomerado chinês Wanda Group é uma das maiores incorporadoras de imóveis comerciais do planeta. A marca patrocinou a Copa do Mundo de 2018 e já teve participação no clube de futebol espanhol Atlético de Madrid. O presidente do grupo, Wang Jianlin, um dos homens mais ricos da China, serviu nas forças armadas chinesas de 1970 a 1986 e foi deputado do 17º Congresso Nacional do Partido Comunista do país, segundo a Forbes.

Em 2016, Wang afirmou à TV estatal chinesa que a Disney não deveria ter ido ao país. "Queremos atuar de maneira que a Disney não possa ser rentável neste setor na China em dez ou 20 anos", disse.

Dono do estúdio de cinema Legendary Entertainment e operador de uma das maiores cadeias de cinema da China, nos últimos anos o bilionário tem vendido parte de suas participações em hotéis e empreendimentos de esporte e entretenimento.

Ele teria sido “forçado a vender muitos de seus ativos no exterior depois que as autoridades chinesas ficaram alarmadas com sua dívida em rápido crescimento”, afirmou o jornal japonês Nikkei Asia. A matéria, de fevereiro deste, ano opina que “Wang, que uma vez disse que ‘manteria alguma distância da política’ agora está se alinhando com o governo Xi [Jinping, ditador do país]”.

Na opinião de Evandro Carvalho, a busca de proteção do Estado chinês por parte das empresas tem crescido no cenário internacional. “O empresário do Wanda viu nisso uma oportunidade de fazer dinheiro e de estar em consonância, de agradar o governo. Antes da guerra comercial do Trump, o número de empresas que tinham uma unidade partidária (do Partido Comunista) dentro delas era baixo. Agora começa a aumentar esse movimento de empresas buscando a proteção do Estado chinês e dos seus interesses”, acrescenta.

Ricardo Caichiolo recorda que a prosperidade chinesa das últimas décadas tem sido acompanhada de perto pelos dirigentes do Partido Comunista, o que inclui a atuação de empresas e a entrada de multinacionais no país. Dessa forma, a liberdade de atuação ocorre enquanto houver convergência de interesses. “As empresas precisam se adaptar às exigências do governo, que são as do partido. É tudo muito bem alinhado. E, para as empresas, se adaptar a essas exigências e entrar em um mercado como o chinês é lucrativo”, analisa.

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