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O atual presidente da Bolívia, Luis Arce (ao centro), e Evo Morales (à direita), em evento em março
O atual presidente da Bolívia, Luis Arce (ao centro), e Evo Morales (à direita), em evento em março| Foto: EFE/Jorge Ábrego

Em fevereiro, as autoridades espanholas encontraram 500 quilos de cocaína escondidos em um avião da estatal boliviana de aviação, a BOA, que fazia a rota comercial entre Santa Cruz de la Sierra e Madri. A droga foi embarcada na Bolívia, “escapando” do controle de sete checkpoints locais e da vigilância por câmeras. Uma operação que obviamente contou com o suporte de autoridades locais. A apreensão pode ser apenas um gigantesco caso de polícia, mas como se trata do vizinho andino, o caso deveria ser, obrigatoriamente, tratado sob a perspectiva de que estamos falando de um Estado criminalizado.

O termo narcoestado, que é bastante difundido, é comumente usado para designar países onde o governo, mas também o Legislativo, Judiciário e as forças armadas são infiltrados por cartéis ou organizações de crime transnacional que têm como atividade básica o narcotráfico. A definição também é utilizada para aqueles países onde se dá um passo além. Agentes públicos com cargos eletivos, muitas vezes, são egressos do tráfico e desde seus gabinetes administram o empreendimento criminoso. Este é apenas um dos caminhos para construção de um Estado criminalizado, mas talvez o mais comum.

Em um narcoestado, a captura do poder político vem na esteira do poder econômico do crime – no caso de países como a Bolívia, a economia é dependente das receitas do tráfico. Mas o conceito que acabo de descrever não é suficiente para descrever um Estado criminalizado, ou o que a Bolívia se tornou. E não só a Bolívia. Cuba, muito antes, e a Venezuela mais recentemente cumpriram os requisitos básicos do conceito clássico de narcoestados, mas foram além.

Quando Evo Morales chegou ao poder em 2006, a Bolívia passou por uma refundação conceitual. Ganhou nova Constituição, nome oficial e bandeira para empacotar a missão nobre que incluía legalizar e dar uma nobreza inventada à produção do principal insumo da cocaína, que são as folhas de coca. Além disso, o governo liberou áreas de cultivo, sustentou o discurso de vitimização dos produtores e espalhou alguns milhões de dólares pelo mundo para patrocinar a nova imagem da nova Bolívia, onde finalmente os indígenas, depois de cinco séculos de exploração, chegaram ao poder.

Enquanto isso, aviões da Força Aérea da Bolívia faziam voos regulares com destino a Venezuela e Cuba recheados de cocaína. Um dos pilotos que operavam a rota assumiu ter transportado a droga que seguia disfarçada de carga diplomática. Não é possível afirmar quantas vezes a operação foi realizada. Os oficiais da Força Aérea Brasileira indicam que, entre 2009 e 2014, a Bolívia usou por 91 vezes o espaço aéreo do Brasil para o trânsito de aeronaves militares que tiveram como destino Caracas e Havana.

Em 2011, um general resolveu reclamar com o presidente Morales sobre o mau uso das aeronaves militares. Mas, por uma coincidência funesta, o militar viria a falecer no mesmo dia em que ousou se queixar das operações de narcotráfico. Oficialmente, o militar morreu asfixiado em seu próprio vômito.

Nos anos 1980, Fidel Castro alugou Cuba, por uma taxa diária de US$ 1 milhão, para Pablo Escobar. O traficante colombiano usava a ilha como um entreposto nas portas dos Estados Unidos, onde estocava a cocaína para depois fazê-la chegar ao território americano, com o auxílio dos militares cubanos que proviam inteligência logística, usando os sistemas de radares do regime para monitorar a localização da Guarda Costeira dos Estados Unidos e de outros agentes de Estado, para identificar as rotas livres para o envio da droga para América.

Fidel, por sinal, foi quem abriu as portas do narcotráfico para o chavismo. Em Hugo Chávez, o espectro, reproduzo o relato de um ex-militar que fez parte do círculo do presidente Hugo Chávez que contou que a justificativa moral para o uso do aparato estatal venezuelano em favor do narcotráfico foi ensinada por Fidel Castro.

Em uma visita a Havana, Chávez compartilhou com Fidel o seu desejo de ajudar as Farc a se reerguerem financeiramente, mas havia o inconveniente da cocaína. Fidel, sem titubear, corrigiu o discípulo. “A cocaína não era um problema, mas sim um instrumento de luta contra o imperialismo”, disse o cubano. O apoio total e irrestrito aos colombianos não só fomentaria a revolução no país vizinho, como causaria danos aos Estados Unidos. O incremento do tráfico, ensinou Fidel, obrigaria os americanos a gastar mais dinheiro com as ações de repressão e com os tratamentos dos adictos.

Assim nasceu o Cartel de los Soles e o narcoestado venezuelano.

Mas tanto Venezuela, quanto Cuba e Bolívia foram além. Transformaram o tráfico de drogas em política de Estado, instrumento assimétrico para obtenção de seus objetivos políticos e militares e remodelaram o conceito para o que acredito que deva se chamar Estado Narco.

Não se trata de um simples jogo de palavras, mas de uma evolução conceitual que permite descrever como um Estado pode vir a se comportar como uma organização criminosa. Ser A Organização Criminosa. Políticos, diplomatas, militares e toda ordem de funcionários precisam ter em mente que quando lidam com seus “pares” oriundos de países criminalizados, não estão tratando com políticos, diplomatas, militares e funcionários regulares, mas atores direta ou indiretamente vinculados a uma estrutura de crime cujas dimensões são estatais.

A Colômbia, que é o maior produtor mundial de cocaína, está frente a frente com um escândalo de grandes proporções, que emparedou o governo do presidente Gustavo Petro. Gravações que revelam conversas de aliados de Petro, que mais parecem papo de mafiosos, sugerem que os cartéis de droga patrocinaram a campanha do presidente.

Petro se diz vítima de armação. Seus apaniguados falam em lawfare. Os aliados, em golpe. Mesmo sem saber ao certo o que está se passando na Colômbia, mas confiantes que nada vai acontecer, esquerdistas de todos os cantos assinaram uma petição em solidariedade ao colombiano, na qual falam em “golpe brando”. Entre os signatários, estão a deputada federal e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, o chefão do MST, João Pedro Stédile, e o deputado federal Guilherme Boulos, do PSOL. Além deles, uma penca de sindicalistas da CUT e outras agremiações. Há tanto brasileiro que supera até a lista de signatários colombianos.

Escobar sonhou ser presidente. Tinha tanto dinheiro que queria pagar a dívida externa do país do próprio bolso. Ele era um chefão do tráfico com DNA de traficante. O tempo passou, o crime evoluiu e com ele, os cartéis e as organizações de crime transnacional. O estilão Escobar de ser se tornou anacrônico. Absolutamente fora de moda e de propósito. O crime avançou sobre o Estado. De poder paralelo, passou a ser poder formal. Bolívia, Cuba e Venezuela são exemplos muito bem-acabados do processo de criminalização de estados inteiros.

A Colômbia de Escobar e de Petro (e ressalto, não faço aqui comparação, apenas referência de nacionalidade) está há décadas neste limiar. Mas a resiliência tem limite. Talvez, este limite já tenha sido superado. São necessárias investigações isentas e sérias para saber até que ponto o tráfico já penetrou o poder, deixando de ser influência para ser o ator central de poder.

Enquanto a esquerda europeia olha para a América Latina imaginando ver por lá seus pares finlandeses, ou americanos que acham que Evo Morales e sua turma são versões latinas do Partido Democrata, a esquerda latino-americana fecha os olhos e se abraça colocando a “unidade ideológica” à frente da integridade e moral. Os crimes – todos eles – são visíveis a olho nu. Mas a revolução vem em primeiro lugar.

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