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Muro separa as cidades de Tijuana, no México, de San Diego, nos Estados Unidos | MARIO TAMA
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Muro separa as cidades de Tijuana, no México, de San Diego, nos Estados Unidos| Foto: MARIO TAMA AFP

Quem ouve o governo Trump falando dos imigrantes que deportou e mandou de volta para o México, até pensa que são todos criminosos e sanguessugas em potencial, aproveitando-se da economia e do sistema social do país, sem nenhum interesse em participar do que se costumava chamar de "sonho americano". 

Acontece que nada disso é verdade. E sabemos porque nós duas conversamos com centenas deles. 

Passamos semanas no México para dar início a um projeto de histórias orais que documenta a experiência migrante. Durante esse período, nossa equipe entrevistou mais de 200 mexicanos que retornaram, a grande maioria por deportação. Alguns foram pegos nos bloqueios de estrada; outros, porque foram parados furando o farol ou excedendo o limite de velocidade. Ficaram detidos em delegacias, cadeias de condado e centros de detenção antes de serem enviados de volta à terra natal. Muitos tinham vivido praticamente a vida inteira no país vizinho. 

Entretanto, apesar dessa experiência, quando perguntamos do mais sentem falta dos EUA, a resposta é automática: "De tudo. Eu me sinto norte-americano", repetem, vezes sem conta. E por que haveriam de não se sentir assim? Cresceram sendo os filhos do pessoal da casa ao lado; estudaram em nossas escolas e foram às nossas festinhas de aniversário; frequentaram nossas igrejas, jogaram nos nossos times. Durante o ensino médio, fizeram bico de chapeiro no McDonald's. 

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Mas também enfrentaram mais dificuldades, sofrendo discriminação de vez em quando. Seus pais tiveram que ter mais de um emprego, quase sempre trabalhando sete dias por semana. Saíam de casa antes de os filhos acordarem e voltavam muito depois de os pequenos terem ido para a cama. Crianças de oito anos assumiam a responsabilidade de cuidar dos irmãos mais novos, tendo que começar a trabalhar assim que chegam ao ensino médio. Porém, por se encontrarem em situação irregular, viam limitadas suas oportunidades; não podiam tirar habilitação e a faculdade era uma possibilidade remota. Alguns acabavam tendo os mesmos problemas que os filhos dos nativos, mas a maioria dava duro para manter a família. 

Ainda assim, o sonho americano significava tudo para eles. Em um tom otimista raramente ouvido nos índios, descrevem os EUA como um lugar onde o sucesso é possível. Vivendo em cidade grande ou pequena, em um estado republicano ou democrata, praticamente todos descreveram a sociedade norte-americana como sendo genuína, aberta, diversa e acolhedora. 

Um homem chorou ao se lembrar do amigo de infância, Matthew, com quem jogava beisebol, nadava no lago da vizinhança e dividia tacos e macarrão com queijo; o outro tinha saudade de pescar nos lagos gelados de Minnesota, usando motos para neve com furadoras especiais para ajudar no trabalho que fazia em uma fábrica de fibra de vidro. E revela outra lembrança: depois de apresentar a guacamole aos amigos, eles faziam questão de comer em sua casa. "Chegamos a um acordo: eles traziam o abacate, eu preparava a mistura." 

Uma jovem confessa que vivia aterrorizada, com medo que os amigos descobrissem sua situação irregular – e quando finalmente teve coragem para contar, todos garantiram não dar a mínima e, de brincadeira, ainda lhe deram o apelido de "estrangeira". ]

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Todos os deportados ressaltaram a gentileza do norte-americano médio, sempre pronto a oferecer ajuda: patrões que lhes deram uma chance, reconheceram sua dedicação ao trabalho, serviram de guias e mentores. Professores cujos nomes ficaram gravados na memória: o Sr. McDonald, a Sra. Wilson, a Srta. Annie... todos aqueles que se esforçaram ao máximo para que tivessem êxito na escola. Treinadores graças aos quais puderam entrar para times de futebol ou futebol americano, pagando as matrículas e os uniformes que os pais não tinham condição de obter. Um rapaz chorou ao se lembrar de um fuzileiro naval que o ajudou a se encontrar quando era um adolescente problemático. 

De volta ao México, esses migrantes tentam desesperadamente encontrar espaço em um país que lhes é estrangeiro. Uma jovem que saiu de Fort Myers, na Flórida, disse: "Eu nem tinha ideia de como era a paisagem mexicana, nem sabia como era o clima." 

E se destacam: vestem-se diferente, pensam diferente, falam um espanhol sofrível e sonham em inglês. Sentem falta da rotina da vida que tinham nos EUA e das ocasiões especiais. Morrem de saudade da comida, mencionando todas as cadeias de restaurantes existentes do outro lado da fronteira. Muitos são categóricos ao afirmar que os tacos mexicanos nem chegam perto dos do Taco Bell; são fãs do futebol de lá, e não do futebol que chamam de "soccer". Alguns confessaram que nem acompanharam a Copa do Mundo porque os EUA não se classificaram. 

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Ainda conseguem recitar com orgulho o Juramento à Bandeira e cantar o hino nacional norte-americano. Adoravam observar os feriados dos EUA e muitos ainda o fazem no México. No Dia de Ação de Graças, agradecem as oportunidades que o país lhes ofereceu; em quatro de julho, comemoram a nação onde "todos valorizam e apreciam o sucesso uns dos outros". 

Falam também da experiência de viver em um país governado pelo Estado de direito. Nossa pesquisa lhes perguntou se tinham medo das autoridades norte-americanas – e, com exceção dos deportados mais recentes, que passaram pela repressão atual, os outros reagiram com um olhar perplexo, seguido de um "não" praticamente unânime. E surpreendem com tais respostas, pois enquanto migrantes irregulares tinham todos os motivos do mundo para terem medo. A grande maioria, porém, compara o crime, a corrupção e a falta de obediência às leis que castigam o México com a segurança que sentiam nos EUA, que descrevem como "um lugar onde não se compra a polícia", "onde se obedece às leis" e "onde as crianças podem brincar na rua em segurança". 

Separados dos familiares e amigos, muitos vivem mergulhados nas lembranças de infância; outros, como Israel Concha, diretor da New Comienzos, organização de migrantes que retornaram e com a qual trabalhamos, se tornaram ativistas, comprometidos em trazer o sonho americano para o México. Eles põem em prática valores adquiridos nos EUA, entre eles o voluntariado, costume estranho a muitos mexicanos, mas "algo que todos aprendemos enquanto morávamos lá", explica Concha. 

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E vimos como esses voluntários estendem a mão aos inúmeros migrantes que passam pelas portas da instituição todos os dias; estão sempre animados, são sempre receptivos, encorajando os mais isolados a participarem do grupo. Encaminham quem sofre de depressão aos centros de terapia, oferecem roupas aos mais carentes, acompanham mulheres agredidas aos abrigos e ajudam os recém-chegados a se matricular em cursos profissionalizantes e encontrar oportunidades de emprego. 

Essas lembranças da vida dos migrantes nos EUA é um contraste gritante com a situação desumana que se desenrola hoje na fronteira. Aqueles com quem conversamos são produto de uma sociedade norte-americana que está se esquecendo de sua identidade. A ironia cruel é que organizações como a New Comienzos estão importando para o México os valores norte-americanos como o respeito mútuo, a tolerância e a generosidade com que seus voluntários foram criados. Enquanto isso, nos EUA, as crianças estão crescendo em uma sociedade onde cada vez mais a agressão, o preconceito e o desprezo pelo sofrimento humano são aceitos e tolerados.

*Anita Isaacs é professora de Ciências Políticas do Haverford College e membro do Centro Woodrow Wilson. Anne Preston é professora de Economia de Haverford.

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