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São Paulo – No dia 26 de março de 1876, o "paquete" Hevelius, escoltado pela corveta Trajano, zarpou da Baía da Guanabara, levando o imperador Pedro II e a imperatriz Teresa Cristina. Começava ali um giro de 18 meses por três continentes. O périplo imperial por dezenas de cidades incluiu, em novembro de 1876, entre a Grécia e a Palestina, passeio de uma semana por Beirute, pelas ruínas romanas de Baalbek e por Damasco.

Ali, observa Roberto Khatlab, pesquisador brasileiro radicado no Líbano, o imperador "divulgou o Brasil". Tinha início, segundo a história oficial, a imigração libanesa no Brasil, que este ano completa 130 anos – embora haja registros de que os "turcos" daquelas paragens, chamados assim porque portavam o passaporte do Império Otomano, tenham chegado pelo menos desde meados do século 18.

Hoje, quantitativamente falando, o Brasil é mais libanês que o Líbano: são 6 milhões de libaneses e descendentes aqui, para 3,8 milhões de brasileiros lá. É uma comunhão de destinos insólita. À primeira vista, Líbano e Brasil não têm nada a ver um com o outro. O Líbano é um mosaico de civilizações milenares – fenícios, assírios, armênios, gregos caldeus –, sobre cuja base se assentaram identidades étnicas e religiosas mais recentes: árabes maronitas, melequitas, ortodoxos, coptas, sunitas, xiitas e drusos. Tudo isso condensado em exíguos 10.230 quilômetros quadrados (metade da área de Sergipe, o menor estado do Brasil).

Pesadelo

Vista daqui do Brasil, a destruição do país recém-reconstruído causa perplexidade, indignação e luto nos intelectuais brasileiros de origem libanesa. "É uma sucessão de pesadelos, que estão além do sentimento humano, porque não é humano", tenta definir o escritor Milton Hatoum.

Seu pai, Hassan, muçulmano xiita do bairro de Borj el-Brajney (sul de Beirute), veio para o Acre nos anos 30, instalou-se depois como comerciante em Manaus, casou-se com uma brasileira católica e "levou-a durante 50 anos à missa de domingo".

Já Hikmat, pai do professor de direito internacional da Fundação Getúlio Vargas, Salem Nasser, 39 anos, está agora mesmo em Kilia, a aldeia da família, também xiita, na beira do Rio Litani, a "dez minutos" de onde começa a área que os israelenses mandaram evacuar.

Hikmat, de 77 anos, que mora em Foz do Iguaçu, chegou à aldeia há dois meses, depois que sua mãe morreu. Uma irmã, primos e tios de Salem fugiram de lá, mas seu pai decidiu ficar. "Segundo ele, o moral está alto. A sensação generalizada de boa parte da população libanesa e de muitas mentes e corações árabes e muçulmanos é a de que essa seria a batalha decisiva, em que alguém se contrapusesse a esse poder imbatível", observa Salem.

Há visões mais pessimistas. "O mais doloroso é que isso não vai resultar em nada de positivo", lamenta Mamede Mustafá Jarouche, tradutor das Mil e Uma Noites e professor da Universidade de São Paulo, que, como muitos árabes em todo o mundo, também tem ficado "muito vidrado" nos canais de TV árabes.

"Estou me sentindo violentado", explica o tradutor. Seu pai, de 70 anos, chegou do Líbano (via Turquia) na terça-feira, num avião da Força Aérea Brasileira. Havia 30 anos que ele não visitava a terra natal, que deixou em 1976. "Meu pai está arrasado", resume Jarouche. Mas também comovido com o seu resgate: "Ele diz que a vida dele foi salva por ele ser brasileiro. O Brasil é maravilhoso."

Amor

Cada família libanesa no Brasil tem uma história para explicar seu caso de amor pelo Brasil. A do geógrafo Aziz Ab’Sáber, um dos mais proeminentes do país, é assim: em 1911, sua avó, inquieta com a demora do marido Chaim, que se estava demorando além da conta em São Luís do Parintins (Vale do Paraíba, SP), incumbiu o futuro pai de Aziz, Nacibinho, então com 15 anos, de ir no encalço do pai fujão.

"Meu pai ficou famoso na aldeia por essa odisséia", diverte-se o geógrafo. O avô Chaim chegou contando maravilhas do Brasil, uma terra livre da dominação otomana e do conflito religioso.

Pouco mais de um ano depois, Nacibinho andava no mercado de Beirute com a mãe quando um terrorista druso encostou um revólver em sua testa e perguntou ao parceiro: "É mais um cristão que morre?" O outro respondeu: "Não tenho certeza." Decidiram poupá-lo. O trauma fez a avó de Aziz mandar seu pai, Nacib, emigrar para o Brasil. Nacib instalou-se em São Paulo, onde trabalhou como marceneiro, e ganhou o apelido de Turquinho.

A 1.ª Guerra Mundial, somada à gripe espanhola, dizimaria a família Ab’Sáber em Kafara Homei. "Fico muito satisfeito que o Brasil seja uma terra tão boa quanto minha avó disse", conclui hoje o geógrafo, aos 82 anos. "Fico desesperado com a destruição do pequeno Líbano. É doloroso demais."

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