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Era a noite anterior ao solstício de verão e as mesas da barraca estavam preparadas para o banquete anual: abóbora no vapor, vegetais cozidos no vapor, purê de pepino e macarrão de arroz. No centro de cada mesa havia dois pratos tradicionais essenciais para as comemorações na cidade: lichia frescas e potes fumegantes de cachorro cozido, temperados com gengibre, alho, cascas secas de laranja, folhas de louro e erva-doce.

Esse último prato tornou Yulin famosa no mundo todo, graças ao festival anual da carne de cachorro que terminou no dia 22 de junho, e os habitantes da região já não aguentam mais falar sobre isso.

“Por que todo mundo pega no pé de Yulin?” perguntou Tang Chengfei, de 24 anos, um universitário recém-graduado que estava sentado em uma das mesas. “Você nunca viu os japoneses comendo sashimi de sapo vivo?”

É verdade. É a hipocrisia dos críticos que mais irrita os habitantes dessa cidade agitada de sete milhões de habitantes na região de Guangxi, que faz divisa com o Vietnã, no sul da China.

“Eu compreendo o outro ponto de vista”, afirmou Tang. “Muitas pessoas têm um apego especial com os cachorros. Mas nós crescemos rodeados de carne de cachorro. Para nós é normal”.

Yulin, cujos arredores subtropicais são conhecidos como o local de nascimento da lendária beldade imperial Yang Guifei, tornou-se alvo de uma intensa campanha em defesa dos direitos dos animais, o que deixou as pessoas da região irritadas e na defensiva.

Liderados por ativistas chineses e internacionais, os defensores dos animais exigem que as autoridades do governo local e o público chinês deem fim ao consumo de carne de cachorro e às práticas terríveis que muitas vezes acompanham o comércio de carne menos regulamentado do país. Mais de 10.000 cachorros costumam ser servidos durante as comemorações do solstício de verão em Yulin todos os anos.

Ao longo das últimas semanas, milhões de mensagens condenando essa tradição culinária encheram as mídias sociais chinesas. Protestos e vigílias organizados por defensores dos direitos dos animais foram realizados em todo o país ao durante o feriado de três dias, enquanto mais de 40 ativistas de todo o planeta viajaram até Yulin para defender a causa, muitos pela segunda ou terceira vez seguida.

A campanha obteve uma grande vitória no ano passado, quando a prefeitura de Yulin, em vista das críticas constantes, decidiu se distanciar do festival, declarando que não iria patrociná-lo e que iria impor uma regulamentação dura contra os vendedores de alimentos.

Contudo, apesar do crescimento rápido do movimento, os defensores dos direitos dos animais afirmam que encontram dificuldades cada vez maiores para passar sua mensagem às pessoas mais importantes: os habitantes de Yulin.

“O ambiente nunca foi tão hostil”, afirmou Andrea Gung, a fundadora taiwanesa-americana do Projeto Duo Duo de Bem-Estar Animal, com sede na Califórnia, que visitou o festival novamente este ano. “Antes, os vendedores de carne de cachorro cortavam pedaços de carne e jogavam na nossa direção. Agora eles são muito mais agressivos e policiais disfarçados tiveram que me proteger”.

Os ataques a Yulin contribuíram para fomentar uma mentalidade de “nós contra eles” na região, com muitas pessoas afirmando que foram acusadas injustamente.

Muitos afirmam que a hipocrisia moral em torno do consumo de animais é um saco sem fundo. O que dizer a respeito do consumo de carne bovina, sendo que as vacas são sagradas para os hindus, ou ainda dos porquinhos da Índia na América Latina, dos cães na Coreia o dos perus nos Estados Unidos? O que torna o consumo da carne de cachorro diferente do consumo da carne de frangos ou porcos, eles se perguntam?

“Acho que os ativistas iriam aproveitar mais o tempo deles se preocupassem com questões como a falta de água no mundo ou o sequestro de criancinhas, ao invés de tornar as coisas ainda mais caóticas por aqui”, afirmou Yu Ping, de 48 anos, habitante de Yulin e professor da pré-escola. Yu, como muitos outras pessoas da cidade, insistiu que os cães consumidos em Yulin são criados especialmente com essa finalidade, ao passo que os ativistas dizem que uma grande parcela da carne de cachorro vem de animais de estimação roubados ou de cachorros de rua.

A carne canina não é muito consumida na China, mas é um elemento comum da dieta há muito tempo, especialmente no extremo norte e no extremo sul do país. Cerca de 10 milhões de cães e quatro milhões de gatos são consumidos na China a cada ano, de acordo com grupos que defendem o direito dos animais.

O processamento dos animais, como em qualquer outro abatedouro, não serve para quem tem o estômago fraco.

Por volta das 3h30 da manhã de um domingo recente no Mercado de Dongkou, a principal fonte de carne de cachorro da cidade, a maior parte das lojas estava escura e em silêncio, a não ser pelo pequeno abatedouro.

Uma jaula enferrujada foi atirada ali, caindo ao lado de uma pilha de jaulas que tinham sido descarregadas de um caminhão. Em uma das jaulas havia quatro cachorros de pelos dourados. Os cães esperavam em silêncio até serem retirados e colocados em um espaço reservado no interior do abatedouro.

Através de uma porta aberta, um homem de camiseta branca era visto trabalhando silenciosamente sob a luz fluorescente. Com um pequeno porrete ele abatia um cão após o outro, parando de tempos em tempos para mover os animais atordoados com pinças presas em ao redor dos pescoços.

Em uma viela atrás do abatedouro, cinco homens, alguns sem camisa, trabalhavam com potes de água fervente e lança-chamas para deixar as carcaças prontas para o preparo da especialidade de Yulin, cachorro à pururuca.

Um pequeno grupo de defensores dos direitos dos animais aguardava silenciosamente na viela, documentando a cena com fotos e vídeos para compartilhar com a imprensa e os advogados que acumulavam evidências para abrir um possível processo. Atrás deles, um grupo de homens não identificados filmou os ativistas e os acompanhou até o hotel onde estavam hospedados.

À tarde o Mercado de Dongkou havia aberto as portas e a cena era completamente diferente. A variedade de alimentos expostos era impressionante: de vegetais comuns a cabeças de carneiro por cerca de oito dólares cada, além de civetas vivas, que chegavam a custar 580 dólares por animal. Mais adiante, em frente ao abatedouro, os açougueiros se dividiam em três fileiras e cortavam as carnes de pele dourada sobre grandes blocos de madeira, enquanto os clientes – alguns sem nem descer das motos em que haviam chegado – pediam a carne por cerca de sete dólares o quilo.

Perto dali, ouviu-se um burburinho no mercado aberto. Yang Xiaoyun, uma ativista de 65 anos, havia chegado para mais um dia de negociação com os vendedores de cachorros que queriam tirar proveito de sua disposição em pagar preços altos para salvar cães e gatos da morte.

No da 20 de junho, Yang, viúva e proprietária de um abrigo em Tianjin, gastou mais de 1.600 dólares para salvar cerca de 30 cachorros e 60 gatos. Sua ação foi alvo de crítica de outros ativistas, que acreditam que isso apenas encoraja os comerciantes a trazerem mais cachorros para Yang comprar.

“Toda vida é importante”, afirmou Yang.

Contudo no dia 21 de junho ela foi obrigada a deixar o mercado depois de ser cercada por transeuntes e comerciantes que ameaçavam torturar os animais a menos que ela os comprasse. Enquanto ela se dirigia para o abrigo temporário feito para abrigar os animais resgatados, os comerciantes continuavam com as provocações.

“Nós também adoramos os cachorros”, gritavam. “Principalmente quando estão cozidos!”

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