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Já desafiamos o bom senso ao apostar, recentemente, que outro cardeal com chances tão boas quanto as do filipino Luis Tagle de ser o primeiro papa asiático é Malcolm Ranjith, do Sri Lanka. Agora faremos o mesmo com a África, pois, além de Peter Turkson, de Gana, há outro africano atuante em Roma que pode vencer seus pares em uma disputa igualitária. Quem está dentro do Vaticano dirá que o cardeal Robert Sarah, da Guiné, presidente do Pontifício Conselho Cor Unum, a instituição de caridade do Vaticano, pode ser um competidor forte para se tornar o primeiro papa africano desde Gelásio, que governou de 492 a 496.

Estamos falando de um homem com mais tempo de Roma que Turkson; afinal, Sarah estudou na Universidade Gregoriana nos anos 60 e vem atuando no Vaticano desde 2001 em postos de menor visibilidade. Ele também adquiriu suficiente experiência pastoral como arcebispo de Conakry, na Guiné, por 22 anos. Fala bem francês, inglês e italiano.

Sarah é visto como razoavelmente tradicionalista e discreto o bastante, um homem que não busca a atenção da mídia e que, provavelmente como consequência disso, não tem histórico de controvérsias ou de episódios potencialmente embaraçosos. Mais que isso, é também visto como um eficiente articulador de bastidores, que recentemente venceu, numa disputa interna, a federação de caridade Cáritas Internacional, com sede em Roma. Além disso tudo -- e não é difícil ver por que observadores do Vaticano levam a candidatura de Sarah a sério – talvez ele não seja um competidor de elite, mas alguém que pode "comer pelas beiradas". Como bônus, Sarah tem 67 anos e está exatamente na faixa etária que muitos cardeais acreditam ser a ideal para um pontificado nem breve nem extenso demais.

Sarah nasceu em 1945, no país depois conhecido como Guiné Francesa. Entrou no seminário na vizinha Costa do Marfim e voltou para casa para continuar seus estudos em 1960, mas um ano depois o governo de inspiração marxista do Partido Democrático da Guiné nacionalizou todas as escolas católicas, inclusive o seminário em que ele estava. Sarah e seus colegas tiveram de se redistribuir por outros centros de formação. Ele finalmente concluiu sua graduação no Senegal, depois seguiu para a Universidade Gregoriana, em Roma, e passou pelo Studium Biblicum Franciscanum, em Jerusalém. Dez anos após sua ordenação, Sarah foi nomeado arcebispo de Conakry em 1979, ainda antes de completar 34 anos.

(Como nota de rodapé, diga-se que Sarah foi consagrado bispo por ninguém menos que o cardeal Giovanni Benelli, que foi núncio apostólico na África Ocidental de 1966 a 1967, período em que conheceu o promissor religioso. Benelli se tornou o ultrapoderoso "substituto" – o número 2 da Secretaria de Estado – do papa Paulo VI e angariou apelidos como "a muralha de Berlim" e o "Kissinger do Vaticano". Muita gente ainda se refere ao mandato de Benelli como os anos dourados da Secretaria de Estado, quando tudo funcionava perfeitamente, e a conexão dele com Sarah pode dar ao africano uma vantagem entre os cardeais com idade suficiente para se lembrar desses tempos – incluindo, por exemplo, Giovanni Battista Re, da Itália, e Justin Rigali, dos Estados Unidos, ambos antigos colaboradores do afamado "substituto" e, por isso, conhecidos como "viúvas de Benelli".)

Em 1985, Sarah foi eleito presidente da Conferência Episcopal da Guiné e se tornou o principal interlocutor da sociedade com o governo no caótico período que se seguiu à morte do ditador marxista Ahmed Sékou Touré, ocorrida em 1984. Sarah se tornou um crítico aberto dos regimes corruptos e autoritários. Quando o papa João Paulo II visitou o país, em 1992, Sarah implorou publicamente ao pontífice para que pressionasse os líderes africanos a fazer governos limpos. "Diga aos líderes africanos que as reformas não terão sentido se suas mãos estiverem manchadas de sangue, provocando consideráveis catástrofes humanas e também prejuízos econômicos", pediu Sarah. Quando o regime no poder jogou o líder da oposição Alpha Conde na cadeia, em 1999, depois de uma disputa eleitoral, Sarah exigiu publicamente sua libertação. Enquanto ainda estava em Conakry, Sarah também foi eleito presidente da Conferência Episcopal da África Ocidental, outro sinal de que seus colegas bispos o viam como um líder.

Em outubro de 2001, Sarah foi chamado a Roma para se tornar secretário, o segundo na cadeia de comando, na poderosa Congregação para a Evangelização dos Povos (também conhecida como Propaganda Fidei). Nesse papel, ele passou a ser visto como uma figura importante do Vaticano por bispos de todos os países em desenvolvimento. Nove anos mais tarde, Sarah foi chamado a cuidar da Cor Unum no lugar do cardeal alemão Paul Cordes, o que, simbolicamente, expressou a transição na liderança da instituição de caridade da Igreja do mundo próspero para o mundo em desenvolvimento.

No que os norte-americanos chamam de "guerras culturais", expressão que designa os debates sobre aborto, homossexualidade e família, não há dúvidas de que o perfil de Sarah se alinha à ortodoxia. Durante o Sínodo da África, em 2009, ele condenou a "teoria de gêneros" do Ocidente que descreveu como tentativa de pressionar a África a "aprovar leis pró-contracepção e aborto (sob o conceito de "saúde reprodutiva"), assim como leis em prol do homossexualismo". Tudo isso, afirmou Sarah, "é contrário à cultura africana e às verdades humanas iluminadas pela divina revelação de Jesus Cristo". A África, completou, "precisa se proteger da contaminação intelectual e do cinismo do Ocidente".

Em maio de 2012, o Vaticano estabeleceu novas regras para a federação de serviços de caridade católicos, a Cáritas Internacaional, com sede em Roma. A nova ordem estipulou que a Cor Unum monitoraria a identidade católica da federação e teria necessariamente de aprovar qualquer acordo de cooperação entre a Cáritas e outras organizações não governamentais (ONGs). Além disso, os líderes da Cáritas deveriam jurar lealdade ao presidente da Cor Unum. Dentro do Vaticano, as novas regras foram vistas não apenas como um meio de trazer a Cáritas para o raio de influência da Santa Sé, mas também como uma grande vitória da Cor Unum e de Sarah.

Em dezembro de 2012, o Vaticano fixou novas regras para a caridade católica em geral, também com o intuito de alinhar todas as instituições à mesma identidade e de conectá-las à hierarquia da Igreja. Ao assinar o documento, Bento XVI afirmou que tomou a decisão por recomendação de Sarah. Entre outros pontos, as regras estabelecem que uma instituição de caridade católica não pode receber dinheiro "de grupos ou entidades cujos objetivos se opõem aos ensinamentos da Igreja". Na ocasião, um veterano europeu familiarizado com a formulação das novas regras disse ao National Catholic Reporter que Sarah teve papel de comando no processo. A preocupação com o uso do dinheiro, afirmou o veterano, reflete a experiência de Sarah na África. Nos anos 80 e 90, disse o observador, Sarah se preocupou com a hipótese de que agências da ONU e grandes ONGs estivessem usando seu dinheiro e influência para boicotar os tradicionais valores africanos.

As chances de Sarah para o pontificado são baseadas em três considerações fundamentais.

Primeiro, ele expressaria simbolicamente o fenômeno do crescimento e do dinamismo do catolicismo longe do Ocidente. A população católica da África explodiu de 1,9 milhão em 1900 para 130 milhões em 2000, uma taxa de crescimento de quase 7.000% em um século, e Sarah poria um rosto na fenomenal conquista católica.

Em segundo lugar, Sarah é a personificação clássica do ethos prevalente entre os prelados africanos – profundamente ortodoxos nas "guerras culturais", embora fortemente progressistas nas questões sociais, como preservação ambiental, guerras, igualdade econômica e gestão pública. Em outras palavras, ele pode reunir apoio dos dois grupos no Colégio de Cardeais, dado que cada um encontrará nele um ponto favorável.

Por fim, Sarah é uma antiga peça romana com um histórico de concluir tarefas. Muitos cardeais acreditam que o próximo papa tem de se parecer mais com um gerente de negócios, a começar com uma séria reforma da Cúria Romana, e podem se assustar com candidatos de países em desenvolvimento que não tenham passagem pelo Vaticano. Esse medo não aplica no caso de Sarah.

Em contrapartida, Sarah parece longe de ser eleito por inúmeras razões.

A primeira delas é que muitos cardeais estão procurando um papa que possa ser um evangelizador bem-sucedido, o equivalente, no mundo secular, a um "promotor de vendas". Em outras palavras, querem um papa capaz de apresentar o catolicismo de modo atraente no competitivo mercado do estilo de vida do século 21, o que inclui habilidades de comunicação e experiência com mídia. Sarah, no entanto, é mais um articulador de bastidores que um ator principal. Ele surge como uma pessoa acolhedora, engraçada e modesta, mas nem sempre se mostra confortável sob os holofotes.

Em segundo lugar, Sarah não é tão conhecido entre todos os cardeais, apesar de estar em Roma desde 2001. Precisamente por manter-se de forma discreta, ele é alguém que os demais têm encontrado em sínodos e outros eventos do Vaticano, mas que não produz impressões fortes. Por isso, alguns cardeais podem sentir que votar em Sarah seria como tentar a sorte nos dados – e eles podem não estar predispostos a apostar. Sarah nunca foi uma grande personalidade pública, e os eleitores podem se perguntar como ele se sairia sob a intensa pressão que sempre paira sobre o pontificado.

Ter outro africano na disputa é um desafio extra, pois há o risco de divisão de votos entre os cardeais que consideram boa a ideia de ter um papa africano. Na verdade, alguém pode até argumentar que há – além de Turkson e de Sarah – um terceiro africano que merece ser lembrado no conclave: o cardeal John Onaiyekan, de Abuja, Nigéria. É possível defendê-lo como a maior personalidade e o evangelista mais espontâneo dentre os prelados africanos.

Feitas todas as considerações, tudo é possível em um conclave que parece, ao menos até agora, não apresentar nenhum franco favorito.

Tradução: Maria Sandra Gonçalves

* John Allen Jr. é um dos mais experientes vaticanistas da atualidade. Jornalista do site norte-americano National Catholic Reporter (http://ncronline.org/), ele também colabora com o canal de televisão CNN e com a National Public Radio norte-americana. Allen é autor de vários livros sobre a Igreja Católica, incluindo duas biografias de Bento XVI, uma delas escrita quando Joseph Ratzinger ainda era cardeal. Duas de suas obras foram traduzidas para o português: Opus Dei, mitos e realidade, de 2005, e Conclave, de 2002, em que ele descreve os rituais que envolvem a sucessão do papa e apontava vários favoritos para assumir o posto após a morte de João Paulo II.

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