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"Nesta parte do mundo oriental realizaram-se os sete concílios ecumênicos que ortodoxos e católicos reconhecem como importantes para a fé e a disciplina da Igreja. Eles constituem marcos miliários e guias permanentes ao longo do caminho rumo à plena unidade." -

Bento XVI, em Istambul, no encontro com o patriarca ortodoxo Bartolomeu I, em 2006

"Penso que seja possível uma colaboração fecunda entre cristãos e muçulmanos e, desta forma, contribuirmos para a construção de uma sociedade que, sob muitos aspectos, será diferente daquilo que trouxemos conosco do passado."

Bento XVI, no encontro com a comunidade muçulmana em Berlim, em 2011.

Desafio maior é a paz entre os credos

Para o historiador Euclides Marchi, especialista em Catolicismo, o debate ecumênico vai avançar quando se puder dizer "somos irmãos". A frase, quase um mantra, está no centro do diálogo entre as religiões, cujo marco se deu no pós-guerra. Há os que julgam a questão pouco importante, no que Marchi discorda. Ele cita o teólogo Hans Kung, para quem a sociedade da paz só se realiza com a paz entre os credos. "Estamos num novo momento", observa o historiador, ao refletir sobre o atual estágio ecumênico. Ele se refere ao direito à pluralidade, uma reivindicação própria do século 21. "A sociedade tem um jeito próprio de ver e de se estruturar. Não vamos avançar sem aceitar esse fato."

Se o papado de Bento XVI recebesse notas, sua avaliação na disciplina "ecumenismo" talvez ficasse apenas na média. Saiu-se mal na Universidade de Ratisbona (Alemanha), em 2006, ao citar texto do imperador bizantino Miguel II Paleólogo, que via em Maomé e no Islã uma "dominação pela espada". Soltou uma faúlha no mais minado dos campos políticos e religiosos: o diálogo com os muçulmanos – embora poucos saibam que, um mês depois, 38 intelectuais islâmicos enviaram uma carta ao papa, dispostos ao diálogo.

Em menores escalas, o pon­­tífice também tropeçou na cristaleira ao se referir à Europa como berço católico, fazendo torcer os narizes de seus amigos de infância, os luteranos. Mesma reação provocou nos anglicanos, ao receber de braços abertos dissidentes ressentidos com a ordenação de bispos gays e de mulheres na religião criada pelo rei Henrique VIII. Passou.

Com todas essas notas sangradas no boletim, contudo, o consenso é de que o papa merece boas médias. Afinal, a equação com a qual lidou é das mais difíceis. O ecumenismo, um conceito que por muito tempo parecia rimar com o iê-iê-iê, as barricadas de Paris e todo e qualquer vento libertário soprado na década de 1960, perdeu parte de seu encanto juvenil. Bento teve de se ver com isso.

"Havia um sentimento ecumênico. A Segunda Guerra igualara todo mundo", comenta o ecumenista Antônio Carlos Coelho, 59 anos, professor do Studium Theologicum de Curitiba. Mas súbito, ser ecumênico deixou de invocar uma grande quermesse numa alegre tarde de domingo. Nem João XXIII, nem Paulo VI e, em certa medida, nem o universal João Paulo II passaram pela madureza imposta a Bento XVI. O papa deu continuidade à política vaticana, mas não avançou, como diagnostica o padre Elias Wolff, 48 anos, seis livros publicados sobre ecumenismo e representante do setor na CNBB.

Os principais problemas que afetam a sociedade – do secularismo ao relativismo, passando pelo individualismo e pelo consumismo – atingiram também as igrejas, fazendo com que, num processo inverso ao esperado, dessem um passo do portão para dentro, protegendo-se do rolo compressor da pós-modernidade. "A globalização trouxe às igrejas o medo de perder a identidade", observa Coelho. No século 21, o diálogo inter-religioso se tornou tímido, cerrando a conversa iniciada com o Concílio Vaticano II. Coube a Bento XVI destravá-la, missão da qual não se sai sem risco de acidente. Assim foi.

Avarias à parte, Bento XVI esteve em inúmeras sinagogas. Aproximou-se das igrejas ortodoxas como um humilde mensageiro – com folga, seu maior êxito no campo ecumênico. E mereceria o troféu, caso existisse, por sua paciente conversa com os dissidentes ligados ao francês Marcel Lefebvre, o bispo rebelde e refratário às decisões do Vaticano II. Mesmo não dispondo da verve de um diplomata, saiu-se com inteligência das túnicas justas, suspeita-se, provocadas pela timidez de sua assessoria diante de um teólogo de tamanha estatura.

O fato é que Bento XVI teve de equacionar uma espécie de "missão impossível" no campo do diálogo entre as religiões. As crenças mais representativas do Ocidente também lidam com a evasão de fiéis e com a tentativa de reduzir a fé a uma prateleira de shopping. Há em tudo que é credo problemas caseiros demais com o que se ocupar. Não bastasse, tudo indica que luteranos, católicos, anglicanos e quetais se debatem com outro dilema comum – o discurso ecumênico empacou. E a culpa não é do papa.

Os esforços de diálogo religioso nos anos 1960 e 1970 se deram no sentido de traçar aproximações no culto e alguma unidade nas interpretações bíblicas. Mas ações conjuntas entre as igrejas não avançaram. "Faltou o 'depois', a ação comum. Parou no salão paroquial. Deixamos de alimentar a perspectiva de um dia sermos um", lamenta o ecumenista Coelho.

Foi em meio a esse quadro que se esperou de Bento XVI que desse oxigênio ao setor e, de troco, fizesse do mal-estar com o Islã um sal de fruta diluído num copo de água. "Com qual Islã a Igreja quer conversar? O diálogo inter-religioso se tornou ainda mais complexo e é tratado de forma muito intelectualizada", comenta o historiador Euclides Marchi, criador do Núcleo de Pesquisa em Religião (Nuper) da UFPR.

Não é o único ponto em que os analistas concordam. Mesmo que quisesse ter feito do ecumenismo a maior marca de seu papado, Bento XVI esbarraria num problema de agenda. Desde o dia em que ele acenou para a multidão como papa, teve bombas demais a desarmar. Do comportamento do clero ao de seu gerente de banco. O ecumenismo quase ficou para depois.

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