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Homem faz uma cova para Nur Bashir, de quatro anos, no campo de refugiados de Mogor I Maanyi, em Baidoa, Somalia. Nur morreu das complicações decorrentes da cólera | Andrew Renneisen/The Washington Post
Homem faz uma cova para Nur Bashir, de quatro anos, no campo de refugiados de Mogor I Maanyi, em Baidoa, Somalia. Nur morreu das complicações decorrentes da cólera| Foto: Andrew Renneisen/The Washington Post

Aftin Noor se afastou das pequenas covas que estava cavando e olhou seu trabalho. Exausto, ele jogou suas mãos para o alto, encarando o sol incansável do meio-dia, e pediu uma resposta para Deus. "Eu fiz três covas para crianças esta manhã", contou com uma voz falhada, encharcado em suor. "E já cavei outras 20 esse mês. Por quê?"  

A resposta imediata é cólera. A doença transmitida pela água está se alastrando pelos acampamentos de refugiados espalhados pela cidade, onde estão pessoas que fugiram de seus vilarejos por conta de uma seca perversa. Mas grandes temporais deixaram poças fétidas, aumentado a velocidade de propagação da doença. Como um predador desesperado, a cólera com frequência escolhe os alvos mais fracos: as crianças. 

A seca e a fome trouxeram cerca de 160 mil pessoas do interior para Baidoa. Eles vieram para se salvar de uma inanição quase certa. Mas o aparecimento da cólera está trazendo morte para espaços de refúgio. 

O êxodo para Baidoa começou em novembro do ano passado, quando estoques de comida começaram a acabar depois de dois anos de chuva limitada. Mais de 55 mil pessoas chegaram somente em abril. Vilarejos completos se mudaram para a cidade. 

260 mil mortos

Criança com cólera recebe tratamento em hospital de Baidoa, na SomáliaAndrew Renneisen/The Washington Post

A Somália não é forte contra a fome. Entre o fim de 2010 e o começo de 2012, cerca de 260 mil pessoas morreram nas redondezas de Baidoa, que fica a mais de 190 quilômetros da capital Mogadíscio. Na época, assim como agora, o grupo terrorista islâmico al-Shabab, que controla a parte rural do sudoeste da Somália e é hostil a agências de ajuda humanitária, fez com que fosse quase impossível que fossem entregues alimentos e água para população, exceto em algumas cidades que estão sob controle do governo. 

Baidoa era antes território do al-Shabab. As pessoas morriam enquanto andavam de suas casas para os distantes campos de refugiados perto da capital da país, ou até para os vizinhos Quênia e Etiópia. Agora Baidoa é uma ilha de controle do governo e agências de ajuda humanitária conseguiram estabelecer a presença na cidade. 

Metade da população da Somália, cerca de seis milhões de pessoas, depende agora da ajuda dessas agências. As Nações Unidas e uma constelação de agências locais e internacionais e outros doadores acreditam que estão mais preparados para lidar com essa crise. Muitos acham que 2017 não será um espelho de 2011, mesmo se a chuva continuar não caindo. 

20 mil casos de cólera

O campo de Tawwakul 2 Diinsoor é lar de pelo menos 155.000 pessoas, de acordo com a agência de refugiados da ONUAndrew Renneisen/The Washington Post

Mas a rápida aglutinação dos campos complicou o cenário. Mais de 20 mil casos de cólera ou outras doenças transmitidas por água foram registrados na região de Baidoa desde janeiro. Ao contrário de campos das Nações Unidas na Jordânia ou no Sudão do Sul, os campos de Baidoa são novos e não administrados por eles. Assim, são eles próprios que constroem os abrigos e compram alimentos com o dinheiro que recebem dos grupos de ajuda internacionais. Os campos foram montados em terrenos vazios que pertencem a pessoas locais. Nesse cenário, instalações sanitárias foram deixadas para trás por outras necessidades mais urgentes, como conseguir alimentos. Agora os funcionários desses grupos querem se antecipar para conseguir quebrar o padrão. 

"Estamos negociando com os donos das terras para podermos construir latrinas, mas alguns são muito teimosos", afirma Peter de Clercq, que supervisiona a missão humanitária das Nações Unidas na Somália.

A cólera, que é uma doença endêmica no país, se espalha rápido em locais onde as pessoas defecam a céu aberto e com risco de contaminação de alimentos e água potável.  

"Ainda existe uma vantagem de se estar nos campos. As pessoas têm acesso aos centros de tratamento de cólera em hospitais. É uma doença de fácil tratamento - é só uma questão de se começar antes de ser tarde demais", diz de Clercq.

"Até onde sabemos, é quatro vezes e meia mais provável que você morra de cólera em uma área controlada pelo al-Shabab do que aqui". 

Morte em uma hora

Bashir Bille, 40, olha para o corpo de seu filho, Noor, de quatro anos, enquanto um grupo reza antes do enterroAndrew Renneisen/The Washington Post

Cerca de 200 mortes de cólera e outras doenças relacionadas foram registradas nas redondezas de Baidoa, mas os funcionários estimam que o número nas áreas controladas pelo grupo islâmico seja pelo menos dez vezes mais alta. 

Bashir Bille, de 40 anos, testemunhou o terror da cólera em seu vilarejo. Em poucas horas, um corpo já frágil pela fome pode perder toda sua água, secando de dentro para fora. 

Quando Noor, o filho de quatro anos de Bille, desenvolveu uma diarreia incessante logo depois que sua família chegou em Baidoa há dois meses, o pai rapidamente mandou o menino para o hospital. 

Noor era um símbolo de esperança para a família de Bille. Durante o último período de fome, em 2011, eles fugiram com outras centenas de milhares de pessoas para o campo de refugiados de Dadaab, no Quênia. Eles voltaram para o vilarejo natal deles, perto da cidade de Qansax Dheere, somente quando chuvas intensas voltaram a cair em 2013. Eles sobreviveram, mesmo no meio da morte. A esposa de Bille, Oorow Madsheikh, deu à luz a Noor. 

Ele foi internado no hospital de Baidoa em um momento alarmante. O registro do paciente na enfermaria de cólera começou de forma organizada, mas assim que uma chuva atingiu os acampamentos, as páginas se tornaram poluídas e desorganizadas. 

Sais de reidratação oral deixaram Noor forte o suficiente para que o hospital lhe desse alta alguns dias depois. Mas uma semana depois, em um domingo de manhã no meio de maio, ele teve uma recaída. Ele morreu em uma hora. 

Dois de seus irmãos estão internados com sintomas de cólera. 

"Eu não sei exatamente como eles ficam doentes", disse o pai pálido, olhando para o nada enquanto Aftin Noor e outros coveiros revezavam com as enxadas e pás. Eles eram do mesmo vilarejo de Bille - todos de lá estão no acampamento agora.

"As crianças correm por aí, encostam nas coisas. Eles lambem os dedos. Não podemos ver o que estão fazendo o tempo todo". 

275 mil crianças com desnutrição

Faduma Abdirahman, de 50 anos, cuidava dos seis netos —todos morreram, quatro em decorrência da cólera e dois por causa do sarampo. Andrew Renneisen/The Washington Post

O UNICEF diz que mais de 275 mil crianças da Somália sofrem com desnutrição severa, fazendo com que tenham nove vezes mais chances de morrer de doenças como a cólera ou o sarampo. Em Baidoa, 72% das famílias nos acampamentos têm filhos com menos de cinco anos, de acordo com as Nações Unidas. 

O hospital local, que recebe ajuda de grupos de apoio, salvou muitas vidas. Mas muitas pessoas não se sentem confortáveis em mandar seus filhos para lá, acreditando mais na medicina tradicional. Quando os seis netos de Faduma Abdirahman ficaram doentes em um dos acampamentos, ela decidiu voltar para seu vilarejo a quase 10 quilômetros de distância do que interná-los. 

Demorou apenas uma semana depois de chegarem no acampamento para que duas das crianças tivessem diarreia e os outros quatro contraírem sarampo. 

Abdirahman, de 50 anos, quase não consegue falar, seu rosto marcado por uma expressão de luto inimaginável.

"Eu tentei salvá-los trazendo-os de volta para o vilarejo", ela diz. "Não sabia o que mais podia fazer. Todos morreram".  

A única folga possível da seca é a chuva. A estação, que normalmente começa em abril, não está com o começo regular. De um avião, é possível ver os campos sem irrigação, que se parecem com pele seca. 

O corpo de Noor chegou para seu local de descanso nessa terra rachada, envolvido por um pano branco e um azul. As agências de ajuda recomendam que vítimas de cólera sejam envoltas duas vezes. Noor foi privado do ritual tradicional islâmico de limpeza do corpo, mas um grupo de homens ainda se reuniu para murmurar os últimos ritos. 

Os homens então colocaram o corpo do menino na terra, cobrindo seu corpo com terra molhada, pedras e então terra, mas não foi suficiente para encher o túmulo. Somente puxando um pouco de terra do topo de outro túmulo feito na mesma manhã que conseguiram terminar a tarefa.

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