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Clinton Paradise, 40, criador de crocodilos  em Cape York, Queensland, Austrália. "Eu ainda tenho todos os meus dedos", disse Paradise. | ADAM FERGUSON/NYT
Clinton Paradise, 40, criador de crocodilos em Cape York, Queensland, Austrália. "Eu ainda tenho todos os meus dedos", disse Paradise.| Foto: ADAM FERGUSON/NYT

Há um lugar, além das montanhas da Grande Cordilheira Divisória, perdido das luzes brilhantes dos subúrbios australianos. Conhecido de forma vaga, se não romântica, como "sertão" ("outback") ou "o mato" ("the bush"), ele não tem limites demarcados, mas inclui o interior do país, vasto e pouquíssimo habitado: corresponde a 73% do território australiano, ou mais de 5 milhões de km², mas abriga apenas 5% da população de 24 milhões. 

Foi mitificado em verso e prosa, caricaturizado em filmes como "Crocodile Dundee", e é intrínseco à história e à psique nacional. Apesar de tudo isso, continua praticamente inexplorado, até mesmo pelos filhos da terra. 

Fui criado no que chamamos de "Austrália regional", ou seja, a área que compreende as pequenas cidades além das grandes capitais, mas minha mãe é de Yeoval, um vilarejo agrícola de Nova Gales do Sul que também é o berço de Banjo Paterson, poeta que romantizou a vida sertaneja. 

Dwayne John, assistente profissional de caça de canguru, segura um canguru morto durante uma caçada na estação de Plumbago, no estado da Austrália do Sul, 28 de janeiro de 2017ADAM FERGUSON/NYT

Passei a maior parte dos últimos doze anos longe da Austrália, mas, em dezembro, resolvi voltar minha atenção para essa região que, apesar de pouco explorada, faz parte da minha terra natal.  

Minha aventura abrangeu mais de 19 mil quilômetros, atravessando desertos, minas, trigais e fazendas de gado. A estrada estava pontilhada de animais mortos, principalmente cangurus; eu mesmo atingi sete, tendo matado cinco. 

O sertão do imaginário coletivo envolve um explorador enfrentando uma terra indomável; seus arquétipos incluem o boiadeiro, o criador, o aborígene rastreador, o minerador de ouro, o tosquiador, o proprietário de terras e o fora-da-lei. 

Carros antigos e lixo se amontoam acima de uma escavadeira em um campo de minério perto de Coober Pedy, estado da Austrália do Sul, 17 de janeiro de 2017ADAM FERGUSON/NYT

É claro que encontrei várias pessoas que cumprem esses papéis ao longo da minha aventura de três meses, mas esses modelos idealizados estão cada vez mais restringidos pela modernização. A centralização do comércio e dos serviços, a fuga dos jovens em busca de melhores perspectivas, a agregação e mecanização da agricultura, a mudança climática que transforma a terra vermelha típica da região em ameaça e a pobreza endêmica dos indígenas redefiniram a região. 

A população dali vem diminuindo há décadas, especialmente em proporção à da Austrália como um todo, que vem crescendo. Os aborígenes respondem por vinte por cento dos moradores do sertão quando, há vinte anos, eram quinze (eles são três por cento da população total). 

Mudança total

Um caminhão atravessa uma estrada de terra no estado de Pilbara, no oeste da Austrália, 2 de março de 2017ADAM FERGUSON/NYT

A criação de gado e de ovelhas é parte intrínseca da história do sertão, dando forma à cultura, à paisagem e à mão de obra local, além de ser uma das bases da economia nacional, mas, como tudo em todo lugar, a propriedade pastoral vem sofrendo mudanças nos últimos anos por causa da tecnologia e da mudança climática. 

É mais e mais comum ver as propriedades menores se agregando em conglomerados imensos.  

Um dia, Fred Appleton me levou em seu helicóptero para conferir Islay Plains, quando os primeiros raios do sol iluminavam os eucaliptos da fazenda que possuía desde 2007. Variando a altitude, voamos em ziguezague, identificando as vacas pretas e marrons, para depois baixarmos a ponto de poder arrebanhá-las. De moto, jovens reuniram os animais retardatários e, quatro horas depois, um rebanho de 800 cabeças estava pronto para a contagem e marcação. 

O gado é contado na estação de gado Islay Plains, parte de uma operação de agricultura orgânica, em Alpha, Queensland, AustráliaADAM FERGUSON/NYT

Ouvi muitas queixas sobre esse método do pessoal mais antigo, como Azzie Zilla Fazulla, 90 anos, antigo boiadeiro de Tibooburra. "Esses moleques, sei lá, viu. São gente boa, mas rápidos demais. Não se pode pressionar demais o gado", afirma. 

Mas Appleton é um homem aberto às mudanças. Três anos atrás, ao lado da mulher, Anna, investiu US$1,2 milhão em um reservatório de água e processos orgânicos de longo prazo para proteger suas operações contra o aquecimento global. 

A Austrália é o continente habitado mais seco do planeta e, de acordo com um relatório de 2015 da Climate Council, a mudança climática está aumentando a intensidade e a frequência das ondas de calor que, por sua vez, aumentam a gravidade do período de estiagem. 

Uma criança inspeciona uma ovelha que foi cortada e abatida na estação de Marchmont em Ilfracombe, Queensland, Austrália, 4 de abril de 2017ADAM FERGUSON/NYT

"Durante a seca de 2012, 2013 e 2014, os preços ficaram um horror; alguma coisa tinha que mudar. Tínhamos ouvido falar dos orgânicos e eu achava que tudo não passava de um monte de baboseira, mas aí resolvemos pesquisar melhor. E descobrimos que, na prática, já éramos uma operação nesses moldes. Foi só uma questão de oficializar", explica Fred Appleton, 40 anos. 

"Na época, a carne normal estava a AUD 3 por kg; a orgânica, a AUD 5,50. A diferença chegava a AUD 500 por animal. 

Extraindo riqueza 

Uma mina de minério de ferro no estado de Pilbara, no oeste da Austrália, 2 de março de 2017ADAM FERGUSON/NYT

A mineração continua sendo a força vital do interior, 176 anos depois da primeira extração de chumbo em solo da Austrália do Sul, em 1841. Ela gera cerca de AUD 115 bilhões (aproximadamente US$87 bilhões) por ano, o que representa 6,9 por cento do PIB, segundo um relatório federal de 2015-16, protegendo assim a Austrália das crises financeiras globais mais recentes. 

É quase o triplo daquilo que o volume correspondia em relação ao PIB em 1950, mas menos dos dez por cento da economia nacional por que respondia em 1901. Atualmente há 400 minas produzindo 19 minerais diferentes, de acordo com a Agência Australiana de Estatísticas, com o setor empregando 266 mil pessoas, cujos salários/hora são, em média, os mais altos da nação (AUD 56,90). 

Uma delas é Tom Schluter, 49 anos, um australiano que se mudou para a Tailândia há seis anos e hoje faz parte da mão de obra flutuante ("fly-in, fly-out", FIFO na abreviação em inglês) que o pessoal mais antigo não vê com bons olhos. Ele trabalha duas semanas e folga uma – mas quando está de serviço, cumpre mais de 80 horas a cada sete dias. 

Benjamin Stanley, 21 anos, trabalha na estação de gado Islay Plains, parte de uma operação de agricultura orgânica, em Alpha, Queensland, AustráliaADAM FERGUSON/NYT

Entretanto, em Kalgoorlie, uma das cidades mineradoras mais famosas da Austrália, eu vi o outro lado desse sistema: Kenneth Smith, 74 anos, dono do Grand Hotel desde 1983, me contou histórias de quando o estabelecimento se mantinha tão cheio que ele teve que contratar quatro garçonetes em turnos diferentes. 

"O pessoal das minas de ouro não vem mais ao pub. Isso está matando esse lugar aos poucos", sentencia Smith. 

"Uma grande crise de identidade" 

Daisy Ward, uma idosa australiana aborígene da comunidade de Warakurna, no estado da Austrália Ocidental, 8 de março de 2017. "É como se fôssemos invisíveis, mas nós somos as pessoas do deserto", disse Ward.ADAM FERGUSON/NYT

Em meados do século XIX, Wilcannia era uma cidadezinha próspera, às margens do rio, com uma população de três mil habitantes e treze hotéis movimentados; hoje são umas 600 pessoas, sendo que, dessas, umas 360 são aborígenes. 

Em 2016, teve o terceiro índice de criminalidade mais alto do país. As taxas de suicídio, alcoolismo e desemprego também não param de subir. 

Um pôr do sol rosado desaparecia no horizonte quando estacionei para encontrar um grupo de adolescentes nativos, alguns a pé, outros de bicicleta BMX, em uma rua larga e vazia. Nas roupas, elementos do hip-hop norte-americano, sinal daquilo que, segundo a assistente social Virgean Wilson, estava "matando nossa cultura". 

Pessoas nadam em Packsaddle Creek, em Nova Gales do Sul, Austrália, 2 de janeiro de 2017.ADAM FERGUSON/NYT

"Olho pela janela e vejo nossos meninos vestidos como negros norte-americanos, usando uma gíria horrível e ouvindo uma música medonha que não tem significado nenhum para nós e sei que isso tudo só vai levá-los a uma miséria ainda maior", lamenta. 

O suicídio foi a principal causa das mortes de aborígenes e ilhéus de Torres Strait entre 15-34 anos de 2011 a 2015, segundo os números oficiais. A taxa é de 9,3 por 100 mil para os jovens indígenas de cinco a 17 anos; para os brancos da mesma faixa etária ela não ultrapassa 1,8 por cento. 

Lauren Nye e Wes Gilby se beijam enquanto se sentam com amigos assistindo ao pôr do sol perto de Packsaddle Creek, em Nova Gales do Sul, Austrália, 2 de janeiro de 2017.ADAM FERGUSON/NYT

Segundo o que anciãos como David Clark me disseram, a estrutura social aborígene é baseada em bens compartilhados, e não no capitalismo competitivo que é a base da economia e cultura australianas. 

"Passamos por uma grande crise de identidade. Ninguém se deu ao trabalho de contar a esses jovens de onde eles vêm, a história de seu povo. Quando você não conhece sua origem nem onde se encaixa, é inevitável se sentir desanimado e sem perspectivas", conclui.

Meninas australianas aborígenes em uma rua em Wilcannia, Nova Gales do Sul, Austrália, 24 de janeiro de 2017ADAM FERGUSON/NYT
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