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Cerimônia de abertura da Copa do Mundo no estádio Al Bayt em Al Khor, no Catar, neste domingo (20)
Cerimônia de abertura da Copa do Mundo no estádio Al Bayt em Al Khor, no Catar, neste domingo (20)| Foto: EFE/EPA/Friedemann Vogel

O conceito de sportswashing, ou seja, investir em esporte ou em receber grandes eventos da área para vender uma imagem positiva de um país (o chamado soft power) que na verdade é uma autocracia, não é novo – os prováveis primeiros casos ocorreram na década de 1930, quando a Itália fascista sediou a Copa do Mundo de futebol de 1934 e a Alemanha nazista, os Jogos Olímpicos de Verão de Berlim-1936.

Nos últimos anos, não faltaram exemplos clássicos de sportswashing, com autocracias árabes comprando times de futebol europeus e a Fórmula 1 realizando Grandes Prêmios em países com histórico de violações aos direitos humanos, como Azerbaijão e Bahrein.

Se o objetivo é sempre o soft power, entretanto, as edições dos dois eventos esportivos mais importantes do planeta, a Copa e as Olimpíadas, realizadas em autocracias nos últimos dez anos parecem indicar que o sportswashing não está mais funcionando.

O caso mais exemplar é Pequim, que no espaço de 13 anos e meio recebeu os Jogos Olímpicos de Verão (em 2008) e de Inverno (em fevereiro de 2022). Se no primeiro evento a China vendeu com algum sucesso a imagem de um país que entrava na modernidade e no grande debate geopolítico mundial mesmo sendo uma ditadura comunista, neste ano a crescente escalada autoritária do ditador Xi Jinping impediu a colheita de dividendos políticos.

Os Estados Unidos e outros países fizeram um boicote diplomático a Pequim-2022, ou seja, seus atletas ainda participaram das competições, mas os respectivos governos não enviaram representações à China.

A justificativa foi a violação de direitos humanos no gigante asiático, em especial a perseguição aos uigures em Xinjiang. Também contribuiu o desaparecimento, durante algumas semanas, da tenista Peng Shuai, logo após ela ter denunciado um ex-membro da cúpula do Partido Comunista da China de agressão sexual.

Depois do evento, o fiasco foi completado com a divulgação da informação de que o presidente russo, Vladimir Putin, teria esperado o fim dos Jogos de Inverno para invadir a Ucrânia, para que seus aliados em Pequim não fossem constrangidos.

A Rússia também demonstrou que nem todo o sportswashing do mundo funciona quando há muito pelo que responder. Em 2014, a cidade russa de Sóchi recebeu a Olimpíada de Inverno, mas qualquer tentativa de vender uma imagem simpática do país foi ofuscada pela anexação da península ucraniana da Crimeia, pela guerra civil deflagrada por separatistas pró-Kremlin no leste da Ucrânia naquele ano e por um escândalo de doping institucionalizado.

A Rússia acabou não podendo enviar delegação para as competições de atletismo na Olimpíada do Rio de Janeiro de 2016, e nos Jogos tanto de Verão quando de Inverno seguintes, atletas russos tiveram que competir sob uma bandeira genérica porque o país estava suspenso pelo esquema de dopagem.

Os russos sediaram a Copa do Mundo de 2018, mas, com a invasão à Ucrânia em fevereiro deste ano, protagonizaram um vexame inédito: suspensões foram impostas pela Fifa e outras federações internacionais devido à agressão ao país vizinho, e pela primeira vez na história a sede de um Mundial de futebol foi proibida de tentar uma vaga na edição seguinte – os russos ainda disputariam a repescagem nas eliminatórias europeias, mas foram impedidos de jogar.

Catar: do desconhecimento à má impressão

Quanto ao Catar, já havia muitas críticas pelas denúncias de compras de votos para que fosse escolhido como sede do Mundial de 2022 pela Fifa. Depois, as acusações recaíram sobre o grande número de mortes nas obras para a Copa do Mundo.

No ano passado, o jornal britânico The Guardian informou que mais de 6,5 mil trabalhadores migrantes da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka haviam morrido no Catar desde que o país havia conquistado o direito de sediar a Copa do Mundo, em 2010. Os números totais foram provavelmente muito maiores, já que mortes de operários de outros países não foram contabilizadas.

Entretanto, essas mortes não teriam ocorrido apenas nas obras dos estádios, já que outras de grande porte (de estradas, hotéis, transporte público, um novo aeroporto e até de uma cidade inteira) também foram realizadas no país.

Com a proximidade do início da Copa, que teve seu pontapé inicial com Equador 2 x 0 Catar neste domingo (20), as condenações também recaíram sobre a proibição à homossexualidade, as restrições aos direitos das mulheres e a perseguição a cristãos no país árabe.

Em artigo publicado no site da empresa pública de comunicação alemã DW, o jornalista Matt Pearson destacou que as faixas contra a realização da Copa no Catar exibidas por torcidas de times da Bundesliga (o campeonato alemão) mostraram que o sportswashing parece ter chegado a um ponto em que deixou de funcionar – a realização de grandes eventos esportivos parece até apresentar efeito contrário, ultimamente.

“O sistema kafala de emprego (ou de escravidão, dependendo da sua perspectiva) seria tão conhecido se Cristiano Ronaldo, Lionel Messi, Manuel Neuer e Neymar não fossem jogar no Oriente Médio? As atitudes repugnantes em relação à comunidade LGBTQ, expostas por vários relatos da mídia, seriam um problema? Parece improvável”, questionou.

Em entrevista à Gazeta do Povo, Ana Flávia Pigozzo, professora do curso de negócios internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), apontou que o Catar pode até realizar um evento bem-sucedido do ponto de vista da organização, mas a tentativa de obter soft power aparentemente será um fracasso – muitos que não sabiam nada sobre a pequena nação árabe provavelmente agora têm uma impressão ruim dela.

“É um país que tem um potencial, mas também tem seus problemas. E essa exposição que ele teve acabou sendo prejudicial, porque mostrou uma realidade que talvez fosse melhor não ser mostrada”, disse Pigozzo. “Quando você tem um evento dessa magnitude, o mundo inteiro volta os olhos para o país-sede. E isso deixa nítido o que tem de errado ali.”

Após o desgaste com Rússia e Catar e uma investigação americana atingir nomes importantes da cartolagem mundial, a Fifa decidiu realizar a próxima Copa em três democracias consolidadas: Estados Unidos, México e Canadá serão as sedes do Mundial de 2026.

Já o Comitê Olímpico Internacional (COI), após passar dez anos entre democracias (Rio-2016, PyeongChang-2018 e Tóquio-2020, Jogos de Verão que foram adiados para 2021, devido à pandemia) e países autoritários (Sóchi-2014 e Pequim-2022), emplacou uma sequência de nações democráticas como sedes dos seus próximos eventos: a Itália, com Milão e Cortina d'Ampezzo, receberá os Jogos de Inverno de 2026, enquanto os de Verão serão na França (Paris-2024), nos Estados Unidos (Los Angeles-2028) e na Austrália (Brisbane-2032).

“Esses países [autocráticos] foram escolhidos mais para abrir novos mercados, trazer um novo público. Esses países não eram grandes players [na realização de grandes eventos esportivos]. Agora, parece haver outro momento, voltar para o ‘tradicional’, focar mais no evento em si do que na polêmica”, analisou Pigozzo.

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