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Em menos de uma semana, especialistas ucranianos desarmaram mais de 5 mil minas em Kherson, e número final deve ser muito maior
Em menos de uma semana, especialistas ucranianos desarmaram mais de 5 mil minas em Kherson, e número final deve ser muito maior| Foto: Luis Kawaguti

Eram 6h15 da manhã e as ruas de Mykolaiv, no sul da Ucrânia, estavam desertas. O toque de recolher terminara há 15 minutos, mas poucos haviam saído de casa naquela segunda-feira, 14 de novembro.

Dezenas de carros identificados com os sinais “TV” ou “imprensa” começaram a chegar a um estacionamento público rodeado de pinheiros. BBC, Al Jazeera, NHK, Guardian, La Republica, El País… havia representantes da mídia de quase todas as nações. Esse foi o ponto de encontro marcado pelas autoridades ucranianas para a saída de um comboio em direção a Kherson.

A cidade havia sido libertada há três dias. Os russos se retiraram supostamente por não conseguirem mais manter as linhas logísticas necessárias para abastecer suas tropas. Os ucranianos usaram os lançadores de foguetes Himars para atingir pontes, depósitos de munição e bases russas em ataques sistemáticos.

Como a cidade era a única posição russa a oeste do rio Dnipro (que tem um quilômetro de largura), era muito difícil para Moscou reabastecê-la após os ataques.

Mesmo assim, a retirada russa pegou todos de surpresa.

Os ucranianos reuniram 50 mil de suas melhores tropas para tomar a cidade. Os russos a defendiam com 30 mil. Se tivessem ficado, Kyiv teria tido muitas baixas em um combate casa a casa, onde os ucranianos não poderiam usar artilharia para não ferir sua própria população.

Mas retirada sem luta não combina com o perfil doutrinário de Moscou. Possivelmente, agora os russos vão perder esses soldados em outra frente de batalha mais difícil de ser defendida. Talvez estejam tentando ganhar tempo para receber reforços. Provavelmente não saberemos tão cedo.

Censura à imprensa

De volta a Mykolaiv, as autoridades ucranianas colocaram entre 150 e 200 jornalistas em cinco ônibus. O motivo alegado era a segurança, mas muitos reclamaram do controle de Kyiv à atividade jornalística. Eu estava entre o grupo descontente. Mas era a única forma de entrar em Kherson.

Aliás, o Parlamento da Ucrânia está votando neste mês leis destinadas a censurar a imprensa. O país já está em lei marcial e partidos de oposição ao governo foram colocados na clandestinidade, com o argumento de que estariam apoiando os russos.

Por que isso é importante?

O pano de fundo dessa guerra é um embate entre a democracia, representada pela Ucrânia, e a autocracia da Rússia. O presidente Vladimir Putin parece não querer no país vizinho um exemplo de como a democracia pode florescer e funcionar em um país que já foi dominado pela ex-União Soviética e teve até um sistema de governo parecido com o da Rússia pós-soviética.

Ou seja, o sucesso da Ucrânia como país é uma ameaça ao regime autocrático russo. Imagine o que será do sistema de poder de Putin se os russos resolvem querer democracia de fato? Aviso aos leitores que pensaram imediatamente no assunto do avanço da OTAN (aliança militar ocidental) sobre países que a Rússia acreditava serem dela e em profundidade estratégica para defesa do território russo: favor voltar às colunas de Jogos de Guerra de fevereiro e março - já analisamos naquela época os argumentos de Moscou, vamos em frente.

A questão agora é que, ao colocar a oposição na clandestinidade e tentar censurar a imprensa, o governo ucraniano se aproxima mais do modelo russo do que das democracias ocidentais.

Fiz esse questionamento nesta sexta-feira (18) ao editor-chefe do jornal Odesa Daily, Leonid Shtekel, a um dos diretores do sindicato dos jornalistas ucranianos, Yuriy Rabotin, e ao fundador do jornal Izbirkon, Anatoly Boyko. Eles rapidamente me lembraram que a Ucrânia terá eleições em 2024 e o povo tem a liberdade de escolher um novo governo. Putin está há mais de 20 anos governando a Rússia.

“Mas no fundo há perigo. Esta lei é muito perigosa, não podemos deixar nosso país abandonar a democracia ou a Rússia vai vencer. Essa lei de censura ainda não foi aprovada, vamos torcer para que não seja”, me disse Shtekel.

Estrada para Kherson

A cidade de Mykolaiv fica a 40 quilômetros de Kherson, mas a viagem durou duas horas. O que chama a atenção inicialmente na estrada são as fortificações ucranianas.

São postos de controle semelhantes a postos policiais que vemos no Brasil, distribuídos estrategicamente ao longo da rodovia. Mas em vez de cones da estrada, é possível ver barricadas de dois metros de altura, feitas com blocos de concreto e sacos de areia com buracos que servem de seteiras para as armas. Tudo é coberto por redes de camuflagem.

Linhas trincheiras se estendem por cem ou 200 metros nos campos e plantações adjacentes, formando uma linha de defesa perpendicular à estrada.

Elas se destinam a fornecer abrigo aos soldados tanto contra o fogo de artilharia como contra eventuais avanços do inimigo pela rodovia. Próximo a essas fortificações, estão grandes extensões de campos minados.

Os soldados checavam os documentos dos poucos motoristas que se dirigiam a Kherson. A maioria do tráfego é de caminhões e veículos militares. No sentido oposto, tanques de guerra avariados eram rebocados em carretas para Mykolaiv.

Após vencermos cerca de 15 ou 20 quilômetros, a estrada começou a passar por vilas já no oblast (estado) de Kherson. Eu via na pista as marcas circulares características de explosões de morteiros leves e de bombas de cacho. Após alguns meses circulando por estes lados, já é possível distinguir. Elas não rompem a camada de asfalto, mas lançam estilhaços letais para quem está próximo e deixam marcas características no chão.

Nas plantações ao lado da estrada, vez por outra era possível ver um foguete não detonado e enterrado até a metade no solo.

Praticamente todas as casas das vilas tinham as paredes salpicadas por marcas de tiros, e a maioria já destelhadas. Todos os postos de gasolina do caminho foram completamente destruídos. Foi nessas vilas que ucranianos e russos travaram os maiores combates por Kherson. Hoje poucas pessoas ainda moram lá.

Mais adiante na estrada, havia carcaças incineradas de blindados e, vez por outra, os ônibus tinham que trafegar na contramão, pois a pista à frente fora destruída. Agora eu via as marcas de explosões mais fortes, de artilharia pesada e foguetes, que abriram crateras no asfalto.

Alguns quilômetros antes da entrada da cidade, a ponte de acesso foi dinamitada e toda a área ao redor foi minada. Isso obrigou a comitiva a pegar uma estrada vicinal.

Em uma vila muito pobre, que parece ter escapado da destruição da guerra, moradores acenavam para jornalistas e militares. Suas casas eram uma mistura de madeira, barro e alvenaria. Cada uma com uma plantação ao lado. Pareciam estar ali há séculos, felizmente desgastadas aos poucos pelo tempo e não batidas pelo fogo das metralhadoras ou da artilharia russa.

Vencida a ponte dinamitada, estávamos de volta à estrada principal e em poucos quilômetros avistamos um pórtico de colunas gregas e o nome “Херсон”, Kherson no alfabeto cirílico. Muito adequado, já que a cidade foi fundada pelos gregos antigos e não pelos russos.

Na periferia imediata da cidade, havia alguns prédios arruinados pela artilharia. Mas quando se entra no limite urbano, a sensação é penetrar em uma cidade fantasma, não em uma cidade destruída. Havia alguns prédios atingidos por artilharia, com andares incendiados. Mas eles eram uma minoria. A cidade parecia bem preservada.

Os ucranianos disseram ter evitado bombardear Kherson com barragens de artilharia. Bases russas foram destruídas com foguetes americanos Himars que, em tese, têm precisão ao atingir os alvos. Essa foi a receita para não perder vidas civis ucranianas. Isso também preservou o apoio da população local a Kyiv.

Alegria da libertação

Os ônibus entraram na praça principal da cidade, onde algumas centenas de pessoas comemoravam a libertação. Descemos dos coletivos e encontramos três mesas de madeira com microfones e militares com uniformes de forças especiais guardando o perímetro. Um dos jornalistas matou a charada rápido: Volodymyr Zelensky está aqui.

O presidente apareceu sorridente logo em seguida, metido em um casaco verde oliva. É a primeira vez que eu o via pessoalmente. Havia sem dúvida um fator cênico na situação. Mas não estava diante do comediante outsider que chegou à presidência da Ucrânia.

Em boa forma física, com passos decididos e fala firme, a figura de Zelensky impunha respeito. Especialmente por estar lá a céu aberto, à vista de todos. Séries de disparos de canhões de artilharia e fortes explosões de granadas podiam ser ouvidas a cada cinco ou dez minutos. O barulho era inquietante, mas ninguém procurava abrigo. O combate estava ocorrendo nos limites da cidade e a praça parecia ao alcance da artilharia russa. O som das explosões se misturava aos gritos da multidão em apoio a Zelensky.

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, em visita à cidade de Kherson na última segunda-feira (14). Foto: EFE/EPA/Presidência da Ucrânia
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, em visita à cidade de Kherson na última segunda-feira (14). Foto: EFE/EPA/Presidência da Ucrânia

“Este é o começo do fim da guerra. Nosso exército está avançando passo a passo sobre o território ocupado temporariamente”, disse ele.

“Como eu me sinto? Estou feliz. Nós estamos em Kherson. Olhe para a multidão, eu acho que essa é a resposta. Nós não podemos preparar a reação das pessoas. Elas estavam esperando pelo exército ucraniano.”

“Qual será a próxima cidade?”, perguntou um colega jornalista.

“Não será Moscou”, respondeu o presidente, arrancando risadas dos comunicadores. “Não estamos interessados em territórios de outros países.”

Após a saída de Zelensky, fui conversar com as pessoas na praça. De forma aleatória, comecei a conversar com uma senhora de 67 anos, chamada Olga Mykailona. Ela contou que os russos tentaram impor sua cultura à população de Kherson, fazendo propaganda na TV, substituindo produtos ucranianos por russos nas prateleiras dos mercados, mudando o currículo escolar e até impondo o uso de sua moeda, o rublo.

“Nada deu certo para eles. Por exemplo, não tinha rublos suficientes circulando e eles tiveram que aceitar que voltássemos a usar a hryvnia ucraniana.”

“Eu conheço o Brasil pelas telenovelas, vocês são um povo muito alegre, continuem assim. Nunca entrem numa guerra”, disse ela.

Ao fim da viagem de imprensa, eu e os colegas nos perguntávamos como Zelensky não era atingido pelos russos em suas aparições públicas frequentes.

Conjecturamos que as explosões constantes que ouvimos em Kherson vinham do som dos canhões ucranianos disparando contra os russos. Provavelmente, o centro da cidade estaria fora do alcance da artilharia do Kremlin, debatemos.

Poucos minutos depois, algum jornalista teve a infeliz ideia de pedir aos organizadores da viagem para dar uma paradinha no pórtico grego na entrada da cidade - para tirar selfies.

Os militares concordaram e foi neste momento que granadas de artilharia começaram a cair próximo dos ônibus. O veículo onde estava sacudiu com o impacto de uma explosão próxima e muitos passageiros entraram em pânico e gritaram para o motorista acelerar rápido.

"Se estamos ao alcance da artilharia aqui, Zelensky também estava lá na praça”, pensei comigo, enquanto editava em meu computador uma reportagem para a RedeTV!.

Nenhum jornalista se feriu, felizmente.

Rastro de crimes

Aquela não foi a única viagem que fiz a Kherson. Os militares ucranianos voltaram a levar os jornalistas para a região - dessa vez, sem parada para selfies.

Visitamos uma vila onde houve confronto e agora os ucranianos procuravam em campos e plantações por minas terrestres, granadas e foguetes que não explodiram.

Com detectores de metais, iam avançando devagar no terreno. A um som do aparelho, se ajoelhavam e começavam a espetar a terra com cuidado usando bastões. A desmontagem é um processo lento.

Em menos de uma semana, especialistas ucranianos haviam coletado e desarmado mais de 5 mil minas em Kherson e a perspectiva é que o número aumente exponencialmente. Desde o início da invasão russa, em 24 de fevereiro, mais de 300 mil foram encontradas em toda a Ucrânia.

Quando a guerra acabar, ainda serão necessários ao menos mais seis anos para encontrar e retirar todas.

Por mais brutal que pareça, o uso das minas não é um crime, mas uma tática de retardar o avanço de tropas inimigas - e torná-las alvos mais fáceis para atiradores.

Mas torturas e assassinatos são crimes de guerra.

Fomos levados a um prédio da prefeitura de Kherson que foi convertido pelos russos em prisão. As salas foram gradeadas e transformadas em celas. Quando chegamos lá, mais pareciam depósitos de lixo. Lá eram mantidos ativistas, jornalistas, membros das forças de defesa territorial e suspeitos de colaborar com o exército ucraniano.

Um homem que se apresentou apenas como Maxim era uma das vítimas dos russos, segundo o procurador da cidade. “Eles colocavam um saco de pano na minha cabeça e davam choques elétricos. Queriam saber se eu tinha ajudado as forças ucranianas”, contou o homem.

As torturas teriam acontecido na garagem do prédio. Segundo a procuradoria local, até agora 43 casos foram documentados. Muitos “suspeitos" foram libertados após semanas ou meses no cárcere. Outros não resistiram aos maus tratos, segundo testemunhas.

Fomos então levados pelos ucranianos a um bosque, onde homens com os uniformes e equipamentos dos peritos em desminagem examinavam o solo. Apontei minha câmera para um pequeno grupo e me posicionei para fazer uma narração em vídeo sobre as retiradas de minas terrestres.

Notei em seguida que sobre um tronco de árvores havia uma cruz, fotos e flores secas. Uma senhora se aproximou aos prantos com um ramalhete de flores secas. “Algum morador da região havia pisado em uma mina”, pensei.

Não havia entendido as instruções de um militar minutos antes no ônibus - todas passadas em russo. Aos poucos, comecei a desconfiar que não estava diante de um campo minado, mas sim de um cemitério improvisado, cheio de covas rasas.

“Quando os russos descobriam os moradores que participavam das forças de defesa territorial, os prendiam e traziam até aqui, onde eram executados”, contou um policial. “Um padre que morava na região foi enterrando os corpos. Estamos falando de oito meses de ocupação. Já foram desenterrados 17 só aqui”, disse.

Em uma semana, os ucranianos identificaram mais de 50 covas e esse número também tende a aumentar.

O exército ucraniano ainda tem que libertar centenas de vilas e cidades em quatro oblasts ainda ocupados parcialmente pelos russos.

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