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A trinta quilômetros da fronteira oriental com a Espanha, ficou adormecido por 70 anos um capítulo vergonhoso da história da França e da Europa. Em um terreno baldio em Tramontana, ainda se pode ver os esqueletos de dezenas de barracões e latrinas. É o campo de concentração de Rivesaltes, o maior construído no Ocidente. De 1939 a 2013, mais de 60 mil “indesejáveis” viveram aqui. Os primeiros, refugiados espanhóis. Logo, judeus, ciganos, alemães, colaboradores e harkis argelinos. Por último, imigrantes irregulares. Na sexta-feira, o primeiro ministro Manuel Valls inaugurou um memorial no lugar.

A Catalunha francesa no Languedoc-Rosellón foi, em 1939, o refúgio de meio milhão de espanhóis da Retirada — o êxodo que todos conhecem na região, mas não na Espanha. Um deles era o comandante Victoriano Gómez Díaz, de Torrejón el Rubio (Cáceres). Entrou no campo de 600 hectares em julho de 1940, onde acabaria erguendo 650 casernas.

— Dormiam em um berço com muita umidade. Tinham piolhos, sarna... Comiam pouco e mal. Passavam muito frio. Os guardas, muitos marroquinos, lhes davam surras — conta sua filha, Rosy Gómez, que hoje vive em Argéles-sur-Mer, ao lado de uma enorme praia onde os espanhóis eram amontoados antes de serem transportados a outros campos.

Rosy preside a associação Filhos e Filhas de Republicanos Espanhóis e Crianças Exiladas e organiza todos os anos a Marcha da Retirada, refazendo os caminhos usados para entrar na França, pelos Pirineus. Aos 63 anos, ainda se emociona ao passar pelo terreno pela enésima vez.

— Esse anel de ossos de animais, com as iniciais V.G., foi meu pai quem fez, em Rivesaltes.

Um dos sobreviventes espanhóis que passou pelo Campo é Gilberto Susagna, de 80 anos, que vive em Perpiñán. Foi preso junto com sua mãe, em 1941. Seu pai, comunista, era o xerife do povoado. Perdeu um pulmão na batalha de Madri e fugiu para a França em 1939.

— Os judeus e os ciganos sofriam mais, minha mãe me contava. Eu, ainda garoto, não tanto. Mas me marcou a vida toda.

Quase metade dos 20 mil espanhóis que passaram por Rivesaltes foi enviada aos campos nazistas. 65% morreu. Também perderam a vida 2.300 dos 7.000 judeus deportados ali.

— Enviaram meu pai para Mauthausen em 1941 e, no último momento, uma mão amiga lhe segurou quando já embarcava no trem — narra Rosy.

No campo, projetado e administrado por autoridades francesas, foram encarcerados também soldados alemães presos depois da Segunda Guerra, colaboradores e, a partir de 1960, harkis argelinos. Para fechar o círculo da desonra, nos anos 1980 e 90 e até 2007, o campo recebeu também imigrantes ilegais. Até 2013, permaneciam em alojamentos próximos.

“Crianças voavam”

O passeio entre as instalações e as latrinas estremece. Cada cômodo tem 30 metros de largura, seis de cumprimento e cinco de altura. As frágeis paredes e portas não protegiam os refugiados nem do vendo congelante do inverno frio nem do calor asfixiante do verão.

— Era terrível. As doenças, o frio... O vento, o vento... Repetem os sobreviventes com quem tenho falado. As crianças voavam — conta o presidente do Comitê Científico do Memorial, Denis Peschanski, durante um passeio entre os barracões. Seu pai lutou como brigadista em Albacete, na guerra civil e foi internado em campos franceses.

Foram muitas as tentativas de se destruir as provas deste passado negro. Em 1998, encontraram milhares de arquivos do campo no lixo. O governo e as autoridades locais decidiram derrubar os galpões. Foram impedidos por associações civis, pelos filhos de exilados espanhóis e pela sensibilidade de alguns outros altos cargos locais.

Um dos que se mobilizou foi o prefeito socialista de Argelés, Pierre Aylagas, filho de um agricultor republicano espanhol preso em vários campos, entre eles Rivesaltes.

— Trabalhei por esse memorial porque condiz com os valores que defendo — declarou.

O memorial, obra do reconhecido arquiteto Rudy Ricciotti, é um enorme edifício de concreto sem janelas, fincado abaixo do nível do solo, para não deixar protagonismo aos barracões que o circundam. É um símbolo do confinamento forçado. Em seu interior, nos 4 mil metros quadrados, uma grande sala de fotos, vídeos, mapas, um auditório e um grande espaço pedagógico para alunos e professores.

— Simboliza uma época pouco gloriosa da França mas reconhecida por fim — disse Geneviève Dreyfus-Armand, prestigiada historiadora do exílio. — Seria bom se a Espanha também reconhecesse seu passado negro. Um povo sem memória não pode construir uma democracia de verdade. Não se pode confundir vítimas com executores.

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