Livros - Memórias da perseguição
Rio de Janeiro Durante os últimos anos, opositores ao governo do presidente Vladimir Putin, como o ex-espião Alexander Litvinenko e a jornalista Anna Politkóvskaya, têm sido calados de maneira misteriosa. Tendo ou não o Kremlin responsabilidade sobre as mortes, o fato é que nas últimas semanas eles voltaram a falar, só que nas páginas dos livros que deixaram e que, quase simultaneamente, estão sendo publicados em dezenas de países (leia entrevista abaixo). Uma dor de cabeça a mais para Moscou, em meio a uma crise com os Estados Unidos por causa do projeto americano de um escudo antimísseis no leste da Europa.
"Eu sou o único democrata puro e absoluto do mundo. Mas sabem qual é o único problema? É que estou sozinho", disse o presidente Putin, quando indagado por jornalistas se seu governo perseguia opositores. Além das acusações de Litvinenko e de sua viúva em dois livros, outra publicação que levanta mais denúncias foi deixada por Anna Politkóvskaya. Um Diário Russo (Editora Rocco) reúne histórias e depoimentos recolhidos pela jornalista morta no ano passado e que mostram o lado autoritário do governo Putin. A obra retrata os momentos finais do primeiro mandato do presidente e aponta crimes e irregularidades que estariam por trás da reeleição. Anna também faz um levantamento das ordens do Kremlin, consideradas por ela brutais, nas tomadas de reféns no Teatro Dubrovka e na escola de Beslan.
Rio de Janeiro Termos que por décadas ocuparam um papel central nas relações internacionais voltaram às manchetes dos jornais depois de quase 20 anos. "Equilíbrio de poder", "corrida armamentista" e "voltar mísseis para a Europa" pareciam expressões relegadas aos livros e que só eram ouvidas em aulas de história. Mas as gerações mais novas estão ouvindo, pela primeira vez, as palavras que costumavam dar calafrios em seus pais e avós e escutando-as, em mais um déjà-vu pouco agradável, em russo.
Nas últimas semanas, o mundo tem assistido a reações de Moscou às quais, desde a Guerra Fria, tinha se desacostumado. O último capítulo ocorreu quando a Rússia realizou, há dez dias, testes de novas armas, anunciando ser capaz de superar um sistema antimíssil planejado pelos EUA para ser instalado na Europa Central. O teste ocorreu na semana em que o Reino Unido exigiu a extradição de um ex-agente da KGB, e num contexto de crises bilaterais com Polônia, Lituânia, Estônia, Ucrânia e com a União Européia.
Para Angelo Segrillo, especialista em Rússia e Eurásia da USP, há um trio de fatores principais para a mudança de postura russa, retratada na maior agressividade dos discursos do presidente Vladimir Putin: três fatores são importantes para entender a posição cada vez mais assertiva, ou agressiva, da Rússia.
Primeiro, o fim da crise econômica da última década e a nova prosperidade do início dos anos 2000 deram uma maior confiança ao governo. O segundo fator tem a ver com uma área de insegurança de Putin. De todas as áreas da política externa, seu ponto fraco foram os insucessos em manter a hegemonia russa nas antigas repúblicas da URSS. O terceiro fator foi o 11 de Setembro.
A postura unilateralista dos EUA a partir dali serviu como um estopim e uma desculpa para que Moscou também começasse a adotar atitudes unilaterais no que considera sua própria esfera de influência. Especialistas concordam num ponto: a nova postura não é uma inflexão profunda em relação às políticas interna e externa do país nos últimos anos, mas um novo desdobramento. É o que argumenta Mikhail Alexseev, da Universidade Estadual de San Diego, na Califórnia. "A assertividade da Rússia está em processo de construção há tempos. Você deve se lembrar que o premier Yevgeny Primakov mandou seu avião dar meia-volta e retornar a Moscou em vez de visitar os EUA em protesto contra a invasão de Kosovo pela Otan em 1999", diz Alexseev, nascido em Kiev, então parte da URSS, mas hoje cidadão americano.
"O colapso da URSS foi traumático para a maioria dos russos. E não só devido ao declínio econômico dos anos 90, mas por causa de uma percepção de que seu país encolhera em tamanho e perdera influência, prestígio e respeito internacionais", diz. Segundo o especialista, o Ocidente pode também ter tido sua parte de culpa para a atual política externa de Putin, que tem forte apelo popular na Rússia. "No início dos anos 90, os russos tinham grandes esperanças de que teriam uma relação construtiva com o Ocidente, e que juntos construiriam instituições novas na Europa e substituiriam a Otan. Isso não ocorreu. Os russos se sentiram desprezados pelos líderes ocidentais, que podiam agir assim porque a Rússia era percebida como fraca. Nesse momento Putin sobe ao poder", ressalta Alexseev.
Putin buscou reforçar o papel da Rússia nos planos interno maior controle do governo sobre a sociedade e externo. "É o que o governo Putin chama de 'democracia soberana'. O rosto externo desta política tem como objetivo restaurar a influência russa no mundo e, em particular, nas regiões que cercam a própria russa", afirma Michael Urban, professor da Universidade de Cornell. E é exatamente ao longo de suas fronteiras que a Rússia está tendo a postura mais agressiva nos últimos meses.
A Lituânia teve as importações de gás cortadas, depois de vender uma refinaria a um grupo europeu, e não para uma empresa russa. Algo mais grave ocorreu com outra ex-república soviética.
Em maio, a Estônia se tornou o primeiro país a sofrer um ciberataque organizado, que paralisou transações bancárias, órgãos públicos e empresas por 15 dias. O governo, extra-oficialmente, acusou Moscou. Tudo por causa da transferência de um monumento a soldados soviéticos da Segunda Guerra do centro da capital, Tallin, para um cemitério. No plano doméstico teme-se pela democracia, e os protestos do ex-campeão mundial de xadrez Garry Kasparov são só o retrato mais conhecido. "Desde que o presidente destruiu a Constituição e acabou com o Parlamento em 1993, não há mais democracia a ser derrubada", diz Urban.
Desde então, só mudaram duas coisas. O projeto de Yeltsin de assegurar o domínio do Executivo na Rússia, que ele chamava de "Executivo unificado", foi aperfeiçoado por seu sucessor. Em segundo lugar, a maior parte das instituições da democracia foram substituídas por organismos controlados pelo Kremlin. Na Rússia de hoje, manifestações da oposição são proibidas; governadores não são eleitos, mas nomeados; e jornais e TVs independentes foram fechados. É cedo ainda interpretar que o mundo esteja voltando à Guerra Fria. Como diz Alexseev, ela não foi um "confronto militar ou uma competição econômica, mas um choque de ideologias", o que não ocorre hoje. Segrillo prefere adotar outro termo: "Mais adequado seria paz quente, pois a temperatura está subindo".
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