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Centro destruído de Porto Príncipe: a força de paz da ONU, liderada pelas tropas brasileiras, é o que existe de mais semelhante a uma estrutura institucional no Haiti | Julien Tack/AFP
Centro destruído de Porto Príncipe: a força de paz da ONU, liderada pelas tropas brasileiras, é o que existe de mais semelhante a uma estrutura institucional no Haiti| Foto: Julien Tack/AFP

Um longo caminho para a recuperação

Ari Silveira

Devastado ao longo de sua história por ditaduras, pela miséria e pela guerra civil, o Haiti enfrenta dificuldades adicionais para responder à tragédia e para se reerguer. Na avaliação do diretor do Centro de Apoio Científico em Desastres (Cena­cid), da Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor Renato Lima, o Haiti poderá levar de quatro a cinco anos para se recuperar do terremoto. Experiente em missões de atendimento a desastres, Lima é membro da Coordenação e Avaliação de Desastres das Nações Unidas (Undac).

"A situação, que já era crítica, fica muito mais difícil", diz. "Conheço pessoalmente a defesa civil haitiana. Eles estavam em processo de capacitação para atendimento a emergências, mas o terremoto atingiu em cheio a estrutura governamental. O palácio do governo foi atingido, alguns sistemas ficaram inoperantes e outros operam parcialmente. Todos são muito importantes para o atendimento."

Deficiências

Segundo o professor, as organizações não governamentais internacionais e as Nações Unidas terão um papel muito importante para suprir essas deficiências. "Elas vão ter de ocupar esse espaço que teria de ser tomado pelas estruturas nacionais", afirma.

Em um país que já havia sido devastado por ditaduras, guerra civil e miséria, a reconstrução se torna uma tarefa ainda mais difícil. "O Haiti era um país em construção", define Lima. "O desafio da sociedade global era colaborar para que o país pudesse oferecer qualidade de vida razoável à população."

Para o professor, o terremoto torna "intransponível" essa dificuldade sem ajuda externa. "O Haiti vai necessitar de apoio imediato e ainda mais apoio internacional nos próximos quatro a cinco anos para retomar o nível de antes do terremoto, que já era crítico", avalia.

Lima explica que as respostas à catástrofe se dão em três fases. Na primeira, o atendimento de emergência. A segunda etapa, que dura de seis meses a um ano, é de recuperação. É quando são retomados os serviços públicos, como fornecimento de água e energia elétrica, transporte e escola. A terceira fase é a de reconstrução, para que a estrutura do país atinja os níveis anteriores. É o caso das estradas e edificações. Só depois é que pode-se pensar no desenvolvimento do país.

Os Estados Unidos vão doar US$ 100 milhões. O Brasil prometeu US$ 15 milhões. Gisele Bündchen, diz o noticiário, já enviou US$ 1,5 milhão. Madonna parece ter mandado US$ 250 mil e declarou que suas orações são pelo povo do Haiti. De todos esses atos de generosidade, talvez o mais eficiente seja este último – a oração. O Haiti precisa de um milagre.

O terremoto da terça-feira, o pior em 200 anos na região, abateu um país que ainda não havia se erguido. "Tudo lá é diferente, tudo lá é mais difícil", observa o economista Renato Baumann, diretor do escritório brasileiro da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Há a pobreza extrema – excetuando-se as nações paupérrimas do continente africano, o Haiti é o país mais pobre do mundo, tem a segunda maior taxa de infecção por HIV e tem o mais baixo índice de desenvolvimento humano – e mais uma sequência de desastres naturais.

Em pouco mais de um mês, entre agosto e setembro de 2008, o Haiti sofreu com quatro furacões (Fay, Gustav, Hanna e Ike), que mataram quase 800 pessoas, desabrigaram 112 mil famílias e causaram um prejuízo estimado em US$ 900 milhões, um valor que equivale a perto de 15% do Produto Interno Bruto do país.

Começar do zero

É essa a população que agora enfrenta uma outra tragédia, mais avassaladora. Ainda não se sabe quantas pessoas perderam a vida no terremoto, mas as estimativas da Organização Paname­­ricana de Saúde vão de 50 mil a 100 mil.

Mais do que isso: o Estado haitiano precisa de uma ressurreição. A estrutura institucional desapareceu. Prisões desabaram, libertando criminosos condenados. Ministros estão desaparecidos ou mortos e o próprio presidente do país, René Préval, ficou sem teto com o desabamento do palácio do governo. O país não tem Forças Armadas, apenas um corpo policial pequeno demais para garantir a segurança em uma situação extrema. Até as igrejas, aonde costumam acorrer pessoas em busca de conforto nas tragédias, desabaram – em uma delas morreu a médica Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança.

A força de paz da ONU, liderada por militares brasileiros, é o que há de mais parecido com uma estrutura institucional. "Eu arriscaria dizer que a organização do Estado no Haiti é hoje das forças de paz", disse o senador Flávio Arns (PSDB-PR), sobrinho de Zilda, que esteve em solo haitiano na semana passada.

Baumann afirma que, por maior que seja, a boa vontade dos doadores internacionais e da força de paz pode não ser suficiente. "A dificuldade é internalizar esses recursos. É preciso recompor a estrutura de governo." Para isso, mais do que dinheiro, é necessário ter pessoal e apoio técnico.

Arroz e ovo

Em se tratando de um país pobre, criado no início do século 19 a partir de uma rebelião de escravos, será um trabalho inumano. Não há dinheiro para nada, e a atividade econômica certamente cairá em decorrência do terremoto. A capacidade de produção do país é tão pequena que as remessas de dinheiro feitas pelos haitianos no exterior superam as exportações. No ano passado, o Haiti somou exportações de bens e serviços num total de US$ 896 milhões. Já as remessas chegaram a US$ 1,28 bilhão.

Um milagre econômico precisaria começar com a multiplicação dos alimentos. Metade de toda a comida consumida em Porto Príncipe e no interior é importada. Os ovos, por exemplo, vêm da República Dominicana; o arroz (26 mil toneladas por mês), do Japão, do México, do Canadá e dos EUA, ao preço de US$ 110 milhões por mês. Com a catástrofe, o mais provável é que a produção caia ainda mais.

A mistura da pobreza – 76% da população vive com uma renda inferior a US$ 2 per capita ao mês – com uma situação geográfica desfavorável cria um cenário de risco para desastres naturais. Situado no meio do Mar do Caribe, o país está sujeito a tempestades tropicais num período que vai de maio a novembro, todos os anos. Além disso, está na confluência de quatro placas tectônicas, o que eleva a probabilidade de terremotos. Assim, não dá para dizer que o desastre da última semana não era previsível. Em documento de dezembro de 2008, a Cepal observava: "A forte densidade da população do Haiti, acrescida à multiplicação de edifícios de construção precária e à fragilidade global das estruturas, aumenta a vulnerabilidade diante de tremores de terra". Como se viu na terça-feira.

Ao longo do século 20, segundo a Cepal, o Haiti sofreu pelo menos 20 catástrofes naturais classificadas como severas. Talvez por isso as tragédias não abatam tanto seu povo, que se acostumou com elas. "Os haitianos encontraram meios de manter a cotidiana rede de comércio, e sem alteração de preços", descreve Rodrigo Chara-feddine Bulamah, que faz parte de um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campi-nas (Unicamp) que está no país. Num blog (lacitadelle.wordpress.com), ele e seus colegas têm descrito a resistência, em meio aos escombros, de pessoas que já aprenderam o que é não ter onde morar. "Povo que é forte, que está sempre em movimento, se virando, que é corajoso – não sei se por sentir que não tem o que perder, dado que seu orgulho e sua História ninguém lhes tira", escreve Werner Garbers, aluno da Unicamp.

Quem sabe esse não seja o início do milagre?

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