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"Eu só quero retirar o corpo da minha esposa", lamentava-se Lionnel Dervil, em um apelo inú­­til para enterrar a mulher em sua província natal.

Mas ninguém na base da ONG Médicos Sem Fronteiras prestou muita atenção a Dervil, 38 anos, cambista e pai de quatro filhos. Os médicos se concentravam freneticamente em salvar a vida de sobreviventes, enquanto um vigia tentava manter a multidão de familiares do lado de fora.

É difícil precisar o que é pior, o sofrimento de dezenas de vítimas que esperam junto aos portões, ou o cenário de devastação na vizinhança do edifício.

Uma mulher geme lá fora na calçada, o pé com uma ferida enorme causada por um pedaço de madeira que o atravessou. Uma avó aguenta calada a dor em sua perna direita, quebrada e retorcida. Anestésicos são uma utopia. E os corpos, às dezenas, senão centenas, começam a se decompor sob lençóis brancos.

Sobre alguns dos cadáveres na calçada há pedaços de papelão com nomes. "Regina" faleceu antes de chegar ao hospital particular St. Esprit, localizado a algumas quadras do local onde está a Médicos Sem Fronteiras. Ninguém foi capaz de explicar quem era Regina, .

Dentro da ONG, uma voluntária francesa deu uma ideia do contexto: "Estamos trabalhando acima de nossas capacidades. Não temos como aceitar mais ví­­timas. Não tenho mais tempo para conversar. Por favor, não sei mais o que dizer. Tenho de ir agora."

Dervil continuava olhando para o chão, desconsolado. "Eu só quero retirar o corpo de minha esposa. Eu sei que eles estão ocupados cuidando dos sobreviventes, mas existe uma sala cheia de corpos e eles não me deixam entrar", murmurou.

Os feridos olham para o cô­­modo cheio de corpos e esperam não ter o mesmo destino. Os parentes esperam do lado de fora da área cercada, e fazem orações pelos entes queridos. O mesmo cenário é visto repetidamente em frente a hospitais e clínicas em situações precárias de funcionamento, em uma cidade que, não se sabe como, ainda está de pé.

Ao anoitecer, as trevas co­­brem a cidade, ainda sem energia elétrica. O trauma pós-terremoto faz com que as pessoas saiam de casa para passar a noite na rua. Muitos acreditam que é mais seguro ficar para fora, conversando com os vizinhos sobre o que irá acontecer com Porto Príncipe. Alguns acendem velas sob o céu noturno e, em seguida, entoam cânticos.

Os que se reúnem fora das barracas, em cadeiras de praia, cantam seus hinos pelas ruas vazias da cidade. Uma única frase em crioulo pode ser ouvida repetidamente dentro e fora das paredes dos hospitais, como se isso trouxesse um pouco de ra­­cionalidade em meio à tragédia. "Beni swa leternel," eles cantam. "Louvado seja o Senhor."

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