• Carregando...
Evento  transcultural reúne japoneses e estrangeiros em Kashiwa, Japão | NORIKO HAYASHI/NYT
Evento transcultural reúne japoneses e estrangeiros em Kashiwa, Japão| Foto: NORIKO HAYASHI/NYT

Com o país prejudicado pela escassez de mão de obra – que vem envelhecendo cada vez mais e mais rápido –, os legisladores tiveram de sacrificar a insularidade nacional, cultivada há tanto tempo, ao autorizar um aumento considerável na entrada de estrangeiros.

Graças à lei sancionada pela Câmara dos Conselheiros nas primeiras horas do dia oito de dezembro, pela primeira vez mais de 250 mil vistos de cinco anos de validade serão concedidos a trabalhadores sem qualificação especializada a partir de 2019. 

A medida representa uma guinada impressionante para o Japão, surpreendendo os vizinhos e talvez até a si mesmo. Uma nação que já adotou limites draconianos para a questão agora passa a agir na direção oposta, tentando atrair estrangeiros com a mesma intensidade com que as forças políticas anti-imigração tomam conta do Ocidente.  

Leia também: O governo japonês prometeu acabar com cursos de humanas. Mas o que realmente aconteceu?

Acontece que, aqui, a mudança é motivada principalmente pela economia e a demografia; o país não tem outra opção para preencher as vagas de um mercado de trabalho que está encolhendo simplesmente por causa da idade.  

Mas nem todo mundo está satisfeito com isso. "A aceitação de muitos imigrantes romperia com as fronteiras de nosso país tão singular", assume Koichiro Goto, diretor de uma casa de repouso em Kashiwa, na Grande Tóquio.  

Ainda que relutantes, pessoas como ele apoiam a medida, mais por desespero que por outra coisa. No caso, Goto precisa preencher o quadro da Mother's Garden, uma casa de repouso de 70 leitos com uma lista de espera de mais de 60 nomes, pois os anúncios raramente atraem candidatos a emprego.  

"Se eu não contar com a ajuda dos estrangeiros, meu negócio não vai sobreviver", constata.  

Mudança

Segundo a nova lei, entre 260-345 mil vistos de cinco anos estarão disponíveis para profissionais nas 14 áreas mais afetadas pela falta de pessoal, incluindo o setor de cuidados paliativos, o da construção, agricultura e construção naval.  

A medida também cria uma categoria separada de vistos para os profissionais altamente categorizados, que terão permissão para permanecer no país por tempo indeterminado e gozarão de benefícios ainda maiores, incluindo a permissão de levar a família.  

A mudança representa um marco significativo no governo de tendências direitistas de Shinzo Abe: há apenas três anos, ouviu-se o primeiro-ministro dizer, nos bastidores da Assembleia Geral da ONU, que tinha muitas coisas que estava disposto a fazer antes de começar a aceitar estrangeiros.  

Leia também: Japão aposta em um uma nova identidade no Pacífico e no Índico: liderança mais forte e alcance militar mais amplo

Para tentar reverter a escassez, a princípio ele começou a defender a presença feminina no local de trabalho, como também o adiamento da aposentadoria e o uso de robôs nas vagas abandonadas pelos humanos.  

Entretanto, as proporções do fenômeno, imensas e velozes, forçaram Abe e seus correligionários mais conservadores a aceitar o fato de que os desafios demográficos da nação não podem ser resolvidos só com medidas internas.  

Sem a opção da imigração, a projeção é a de que população japonesa encolha em até 16 milhões de pessoas – quase treze por cento – nos próximos 25 anos, enquanto a faixa etária acima de 65 anos deve deixar de corresponder a um quarto da população para pular para mais de um terço. Só no setor de cuidados paliativos, o governo calcula que serão necessários pelos menos 377 mil profissionais a mais até 2025.  

"A escassez de mão de obra é uma questão urgente. O país necessita de profissionais estrangeiros o mais rápido possível", disse o premiê, durante sessão parlamentar em novembro.  

Entretanto, a nova legislação – que recebeu críticas consideráveis dos partidos de oposição – não representa uma aceitação da imigração, limitando-se a um cálculo comercial profundamente ambivalente. Fortemente defendida por grupos da indústria, é muito vaga em alguns aspectos e restritiva em relação aos tipos de trabalho que os estrangeiros podem fazer e quanto tempo podem permanecer.  

Política de mercado de trabalho

"Não tem nada a ver com o Japão querer se tornar uma sociedade multicultural, nem com o país abrir as portas para desenvolver uma visão mais global; é uma política de mercado de trabalho, pura e simples", afirma Gabriele Vogt, professora de Política e Sociedade Japonesas da Universidade de Hamburgo, especializada em imigração.  

Embora a nova lei marque uma mudança política oficial, o fato é que há muito o Japão recebe imigrantes por meio de opções alternativas, como os vistos concedidos a brasileiros e peruanos com base na ascendência e os programas técnicos especiais para estagiários, principalmente da China e do Sudeste Asiático, com o objetivo de supostamente aperfeiçoarem seus conhecimentos para levá-los para a terra natal. Até outubro, segundo dados do governo, havia quase 1,3 milhão de trabalhadores estrangeiros no Japão.  

Como opção de mão de obra barata, muitos empregadores usam trainees, mas esses quase sempre sofrem abusos. Fontes oficiais confirmam que, entre 2015 e 2017, 63 deles, todos estrangeiros, morreram de acidentes de trabalho ou doenças; outros seis se suicidaram.  

Os críticos temem que a nova lei simplesmente estenda o nível da exploração ao imigrante. "Sem um sistema de monitoramento ou inspeção, o sistema não será administrado corretamente", garante Chikako Kashiwazaki, professora de Sociologia da Universidade Keio, em Tóquio.

Ruptura social?  

Prova da profunda suspeita com que os estrangeiros são encarados no país, os políticos de direita e esquerda já se questionam se a abertura das fronteiras significará uma ruptura social.  

"É preciso garantir vagas para os idosos e os cidadãos de meia-idade, as mulheres e os jovens que não conseguem trabalho devido a dificuldades de interação social ou doenças mentais, como a depressão. Além disso, não podemos permitir que os estrangeiros se aproveitem do serviço social japonês", escreveu Shigeharu Aoyama, membro do Partido Liberal Democrata da situação, na revista de direita "Ironna".  

Em pronunciamento na Câmara, em novembro, Shiori Yamao, do Partido Democrático Constitucional, esquerdista e o maior da oposição, fez um alerta: "Se abrirmos a porta antes de estabelecermos um sistema meticuloso, não poderemos fechá-la facilmente."  

Na Mother's Garden, a casa de repouso de Kashiwa, cujos corredores já estão cobertos com a decoração natalina, Goto, o diretor, admite temer o choque cultural entre os japoneses e os estrangeiros. "Acho que pode ser complicado para os imigrantes entender o espírito japonês", diz.  

Já para o diretor das instalações, Kanako Matsuo, os taiwaneses, filipinos e vietnamitas que trabalham ali "têm o coração parecido com o dos japoneses". "Não sinto nenhuma diferença drástica em relação a eles", confessa.  

Recentemente, na hora do almoço, Ayuko Iwai, uma cuidadora de 29 anos, dava uma mistura de frango desfiado e arroz, na boca, para um paciente. Seu colega estava tratando de outro, mas havia cinco impacientes em suas cadeiras de rodas, diante da TV. Em breve seria a folga do rapaz, e Iwai teria de cuidar de dez idosos sozinha.  

"Se tivesse mais gente, poderíamos nos dedicar a cada um individualmente", explica.  

Política imigratória a longo prazo

É pouco provável que os estrangeiros não especializados e com vistos temporários tenham muitas opções em emprego ou possam viajar com as famílias. De fato, os analistas temem que sejam tratados como meros objetos.  

"A decisão levanta questões éticas mais amplas, nas quais o governo provavelmente nem pensou ainda. Na verdade, talvez influenciado pelos tempos ‘trumpianos’ atuais, deve ter se sentido estimulado a tratar o imigrante apenas como instrumento de trabalho, deixando de lado o fator humano", diz Erin Chung, professora de Política no Sudeste Asiático da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore.  

Abe enfatiza a temporariedade dos vistos, mas, para os analistas, as autoridades têm de desenvolver uma política imigratória de longo prazo.  

Lully Miura, professora de Política Internacional da Universidade de Tóquio, prevê que a China, que em breve terá de lidar com o declínio e envelhecimento da população, também vai ter de começar a recrutar gente de fora. "É por isso que precisamos criar um sistema adequado, para que os estrangeiros vivam e trabalhem satisfeitos aqui no Japão."  

Enquanto isso, os governos locais têm dificuldades em oferecer serviços para os não japoneses. Katsutoshi Murayama, vereador de Kashiwa, conta que a Prefeitura teve de montar um guia com instruções para o dia a dia em várias línguas – e ainda tem dúvidas em relação à capacidade de aclimatação dos estrangeiros à sociedade japonesa, tão cheia de regras.  

"Nosso maior medo é saber se vão conseguir obedecer às normas mais básicas, tipo fazer a seleção do lixo", questiona.  

The New York Times News Service/Syndicate – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]