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Roupas usadas são vendidas em uma banca em Raqqa, onde sinais de vida voltaram a alguns bairros | Alice Martins / The Washington Post
Roupas usadas são vendidas em uma banca em Raqqa, onde sinais de vida voltaram a alguns bairros| Foto: Alice Martins / The Washington Post

Raqqa, Síria. Essa arruinada e amedrontada cidade já foi a capital do grupo terrorista Estado Islâmico, vitrine do seu califado e um ímã para atrair combatentes estrangeiros ao redor do mundo.

Agora, é o cerne do mais novo compromisso dos Estados Unidos com uma guerra no Oriente Médio. 

O comprometimento é pouco, alguns milhares de soldados foram enviados pela primeira vez à Síria há três anos, para ajudar curdos sírios a combater o Estado Islâmico. Em março, o presidente Donald Trump disse que as tropas seriam levadas para casa assim que a batalha fosse vencida, e o último esforço militar para expulsar o grupo terrorista do território começou recentemente. 

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Em setembro, no entanto, os EUA mudaram o discurso e disseram que as tropas vão permanecer na Síria, enquanto esperam um acordo global para a guerra no país, e com uma nova missão: lutar contra a crescente influência do Irã. 

A decisão coloca as tropas americanas no controle geral, embora indefinidamente, de uma área que compreende quase um terço da Síria – uma vasta extensão de terreno predominantemente desértico do tamanho do estado da Louisiana, ou do Ceará. 

Membros da milícia Sanadid da tribo Shammar fazem a guarda enquanto uma tempestade de areia se aproxima de sua base em Hasakah, nordeste da SíriaAlice Martins / The Washington Post

O Pentágono não revela quantas tropas estão lá. Oficialmente, seriam 503, mas, no começo deste ano, um oficial ‘deixou escapar’ que o verdadeiro número pode chegar perto de 4 mil. A maioria deles é das forças de Operações Especiais e suas atividades são leves. Seus veículos e comboios ressoam de tempos em tempos pelas estradas vazias do deserto, mas é raro encontrar soldados americanos em vilarejos e cidades. 

A nova missão levanta questionamentos sobre o papel que eles desempenharão e se a presença americana poderá ser um ímã para conflitos regionais e insurgência. 

A área é cercada por poderes hostis à presença dos Estados Unidos e às aspirações dos curdos, que governam a área de maioria árabe em busca de uma ideologia esquerdista formulada por um líder curdo turco preso. Sinais de que o Estado Islâmico está começando a se reagrupar e rumores de descontentamento na comunidade árabe apontam para a ameaça de uma insurgência. 

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Ilham Ahmed, funcionária da autogestão do norte e leste da Síria, como é chamado o autointitulado governo da área, disse que sem a presença das tropas americanas esses perigos iriam, muito provavelmente, acender uma nova guerra. “Eles têm que ficar. Se eles saírem e não houver solução para a Síria, será catastrófico”, disse ela. 

Mas ficar também pode ser arriscado, e os desafios já estão começando a aumentar. 

No mês passado, uma ameaça turca de invasão à área forçou os Estados Unidos a espalhar tropas ao longo da fronteira com a Turquia, que reuniu tropas e tanques na região.

A Turquia considera a principal milícia curda, as Unidades de Proteção Popular (YPG), filiada ao ilegal Partido dos Trabalhadores do Curdistão, como uma organização terrorista, e teme as consequências para sua própria segurança se o grupo consolidar seu poder na Síria. 

Tropas do governo sírio e combatentes iranianos estão no Sul e Oeste. Eles têm ameaçado recuperar a área à força, em busca da promessa do ditador Bashar Al Assad de colocar todo o país sob controle do governo. 

A Síria e o Irã vêm cultivando laços com tribos locais, e a intenção dos Estados Unidos de conter a presença iraniana em território sírio pode, como resultado, estreitar ainda mais esses vínculos. 

Lealdades tribais

Longe das linhas de frente, a paz que seguiu a expulsão do Estado Islâmico de Raqqa e arredores está começando a desaparecer. Uma série de misteriosos bombardeios e assassinatos em algumas das áreas retomadas dos militantes até três anos atrás aumentou a tensão. Muitos são reivindicados pelo Estado Islâmico, e o porta-voz e Coronel do Exército Americano, Sean Ryan, disse que não há razão para não acreditar que o EI seja responsável. “Nós sabemos que eles estão se reagrupando nessas áreas”, disse. 

Mas há suspeitas generalizadas de que qualquer uma das potências regionais que se opõem à presença dos EUA e à busca do autogoverno pelos curdos possa estar desestabilizando a área, encontrando aliados entre árabes insatisfeitos e desconfortáveis com a ideia de serem governados a longo prazo pelos curdos. 

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Os árabes reclamam que as forças curdas tentaram incluí-los em seu experimento de autogoverno, mas mantêm domínio em todos os níveis. 

Essa é uma parte da Síria onde as lealdades tribais muitas vezes superam a política. De acordo com Sheikh Humaidi al-Shammar, o cabeça da influente tribo Shammar, os grupos estão sendo ‘paparicados’ por todos os atores regionais que têm interesse em controlar a área.

Sheikh Humaidi al-Shammar, terceiro da esquerda, o líder da influente tribo Shammar, cumprimenta um convidado em sua residência em Tel Alo, SíriaAlice Martins / The Washington Post

Na imensa mansão de Shammar, que cresce no deserto perto da fronteira iraquiana, dezenas de líderes tribais se reuniram recentemente para o costumeiro divã semanal, invadindo a abafada sala de recepção, vestidos com mantos dourados e escoltados por guardas armados de pistolas. 

Shammar revelou que os convidados iam de sheiks filiados ao regime de Assad e seu partido Baath a representantes do Estado Islâmico, rebeldes do Exército Livre da Síria e Forças Democráticas Sírias (FDS) lideradas pelos curdos - um espectro daqueles que competem pelo controle no nordeste sírio. 

Shammar aliou sua tribo aos Estados Unidos e aos curdos, além de contribuir com soldados de sua pequena milícia, as Forças al-Sanadid, para batalhas contra o Estado Islâmico. No entanto, ele tem muitas preocupações: saber que os Estados Unidos falam em contrariar o Irã pode levar a região a um novo conflito, e que os árabes da região serão excluídos de qualquer acordo que, eventualmente, seja alcançado com os curdos. “Tudo é incerto. Nós somos parte de um jogo global, e o controle não está em nossas mãos”, disse. 

Seu filho Bandar, que lidera a milícia Shammar, disse que a tribo apoia um novo tipo de acordo para os curdos na Síria “porque eles são nossos irmãos e se sacrificaram muito”. 

“A principal preocupação da população árabe é de que uma etnia – os curdos – vai construir um Estado e impor sua autoridade sobre os outros. A coalizão criou as Forças Democráticas da Síria para ser multiétnico, mas as pessoas sabem que não é assim. É um único ator que autoriza e controla tudo”, disse. 

Um membro da milícia Sanadid dirige uma caminhonete perto da base da tribo Shammar na região de HasakahAlice Martins / The Washington Post

Uma questão de tempo

Líderes curdos disseram que estão trabalhando duro para convencer a comunidade árabe de que o plano de governo deles vai incluí-los. Segundo Saleh Muslim, alto funcionário do Partido da União Democrática, a ala política das Unidades de Proteção Popular (YPG), sessões educativas estão sendo realizadas em território árabe para tentar levar a população a concordar com os pontos de vista de Abdullah Ocalan, líder curdo turco que inspirou a ideologia da YPG. 

“Somos muito sinceros em relação a morar juntos. É uma questão de tempo, talvez precisemos de três ou quatro anos para tornar isso estável”, disse ele. 

Ainda não está claro se os curdos têm três ou quatro anos. Autoridades norte-americanas esperam que sua presença no país tenha influência nas negociações sobre um eventual acordo para acabar com a guerra na Síria, com o objetivo de garantir alguma forma de poder para seus aliados curdos, além de reduzir a influência iraniana. 

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Mas tal acordo está longe de virar realidade. Assad prevaleceu contra rebeliões em outros lugares do país e não se mostrou aberto para fazer concessões. A expectativa entre muitos moradores, curdos e árabes, é de que o governo acabe recuperando sua autoridade sobre a área. 

Após Trump ter dito que as tropas seriam retiradas logo, muitos começaram a planejar essa eventualidade, incluindo os curdos, que iniciaram negociações com Damasco para um acordo bilateral direto. As negociações não deram em nada e, agora, os americanos permanecem – mas autoridades curdas dizem que estão mantendo canais abertos de comunicação, caso Trump mude de ideia. 

“Tudo é muito complicado e ninguém sabe para qual lado ir. Não sabemos quem está contra quem e quem está com quem”, disse Amjad Othman, funcionário das Forças Democráticas da Síria. 

Todos os desafios e complexidades do nordeste da Síria pareciam estar concentrados na pequena e estratégica cidade de Manbij. Localizada ao lado do rio Eufrates, ficou livre do Estado Islâmico através de ações de forças curdas ao longo dos três últimos anos. Agora, ao Norte, fica o território controlado por tropas turcas e seus aliados do Exército Livre da Síria. Ao Sul, pelo governo sírio e seus aliados, Rússia e Irã. 

No meio, estão os americanos. Esse é o um dos poucos lugares onde os militares americanos têm uma presença visível. De acordo com funcionários do conselho, há três pequenas bases norte-americanas ao redor da cidade apoiando o esforço dos EUA para manter a Turquia e o Conselho Militar Manbij, afiliado aos curdos, afastados. Até agora, diplomatas têm trabalhado para conter as tensões, e as forças armadas dos EUA e da Turquia começaram, recentemente, a conduzir patrulhas em conjunto ao longo da linha de frente. 

No entanto, ataques realizados por assassinos dirigindo motocicletas e que colocam bombas ao longo das estradas estão acontecendo com cada vez mais frequência atrás das linhas de frente. Autoridades locais acreditam que grupos filiados ao governo sírio e ao Irã estão por trás de algumas das ações, de acordo com Mohammed Mustafa Ali, conhecido como Abu Adil, chefe do Conselho Militar de Manbij. “Estamos cercados por inimigos e todos querem vir para cá”, disse. 

Escombros de hotel destruído por ataque aéreo em Raqqa. Um ano após a expulsão do Estado Islâmico, a cidade ainda está em ruínasAlice Martins / The Washington Post

Cidade ainda em ruínas

Enquanto isso, as frustrações estão crescendo com a grande falta de financiamento para a reconstrução, e impedem o esforço de conquistar confiança em áreas árabes não-curdas, dizem autoridades. 

No início de 2018, Trump cortou US$ 200 milhões de dólares que haviam sido destinados a reparos essenciais nas áreas mais danificadas. Embora essa quantia tenha sido substituída por doações da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, é uma fração dos bilhões de dólares necessários. 

É em Raqqa, a maior cidade onde as tropas dos EUA estão instaladas, que a frustração é maior. O local foi devastado por ataques aéreos realizados pelos EUA, que acompanharam a ofensiva de quatro meses das Forças Democráticas da Síria para expulsar o Estado Islâmico. Um ano depois, Raqqa ainda está em ruínas. 

Sinais de vida estão retornando, à medida que lojas e mercados estão reabrindo as portas em alguns bairros. Cerca de metade da população retornou, espremendo-se nos edifícios menos danificados, às vezes vivendo sem paredes e janelas. A maioria das estradas foi limpa de pilhas de escombros deixados pelos bombardeios, mas ainda há blocos destruídos e inabitáveis. A água voltou em setembro, mas ainda não há eletricidade. 

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Sem maior apoio financeiro, há um risco de que Raqqa “volte à mesma vulnerabilidade que o Estado Islâmico encontrou quando chegou, uma cidade ‘quebrada’ pronta para a exploração extremista”, mostra um relatório do inspetor-geral do Pentágono divulgado no mês passado, citando um funcionário do Departamento de Estado. 

A raiva nas ruas é visível. Alguns moradores são abertamente hostis a visitantes estrangeiros, o que é raro em outras cidades e aldeias na Síria e Iraque que foram libertadas do controle do Estado Islâmico. Mesmo aqueles que apoiam a presença dos militares dos EUA e das FDS dizem estar ressentidos pelos americanos e seus parceiros na coalizão anti-EI, que bombardearam a cidade, não estarem ajudando a reconstruir o local. 

E muitos parecem não apoiar seus novos governantes. 

"Não queremos os americanos, isso é ocupação. Eu não sei por que eles tiveram que usar um número tão grande de armas e destruir a cidade. Sim, o EI estava aqui, mas nós pagamos o preço. Eles são responsáveis por isso", disse um alfaiate que não quis divulgar seu nome, pois teme as consequências de falar o que pensa. 

Melancolicamente, ele falou sobre a vida enquanto estavam sob domínio do Estado Islâmico e, segundo o alfaiate, as ruas estavam seguras. Seu negócio era bom porque os combatentes estrangeiros iam até ele para obter roupas de estilo afegão, com calças folgadas e túnicas, que eram fornecidas pelo Estado Islâmico. Agora, a cidade está meio vazia e os clientes são poucos. 

Todo mundo diz que as ruas não estão seguras agora. Nos últimos meses, houve um aumento no número de assassinatos e sequestros, principalmente visando membros das forças de segurança ou pessoas que trabalham com o conselho local. Mas alguns críticos das autoridades também foram mortos a tiros e, à noite, há sequestros e roubos. 

“Permanecendo, apesar de você”, em referência a um slogan do Estado Islâmico, recém-pintado em um muro em RaqqaAlice Martins / The Washington Post

Há pichações que surgem geralmente durante a noite e mostram um sinistro lembrete: o Estado Islâmico está tentando encenar um retorno. 

"Permanecendo, apesar de você", dizia a escrita rabiscada em tinta preta na parede de um prédio destruído, uma referência ao lema do Estado Islâmico, "Remanescente e Expansível". 

A tinta estava fresca.

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