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Multidão aguarda pela queima de fogos em Washington DC | BRENDAN SMIALOWSKI/AFP
Multidão aguarda pela queima de fogos em Washington DC| Foto: BRENDAN SMIALOWSKI/AFP

Em 4 de julho de 1776, os sinos da igreja tocaram em Filadélfia. O Congresso Continental aprovou a Declaração de Independência para informar o mundo de que o objetivo da revolta colonial, que havia começado mais de um ano antes, não era somente uma revolta dentro do Império Britânico. Pelo contrário, os rebeldes estavam buscando a criação de uma república independente, uma que o mundo nunca viu.

Suas exigências foram formuladas na linguagem romana dos direitos naturais. "Todos os homens são criados iguais, eles são dotados pelo seu Criador com certos direitos assegurados para sempre, entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade". Os autores deste texto revolucionário advertiram que todos os governos deveriam respeitar esses direitos ou então enfrentariam as consequências: "sempre que qualquer forma de governo quiser passar por cima desses direitos, o povo tem permissão para alterar, abolir, ou instituir uma nova forma de governar".

Esta era uma postura radical para encarar um mundo ainda dominado por reis que exigiam governar pela vontade divina, e isso teria profundas implicações para a política externa dessa nova república. Ao contrário de seus vizinhos, e do Velho Mundo, os estadistas americanos nunca iriam se contentar com uma política externa baseada na repreensão de Tucídides — historiador da Grécia Antiga — que dizia "os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem".

Robert Kagan escreveu em seu livro “Nação Perigosa” que Os Fundadores haviam "inventado sem querer uma nova política externa fundada na ideologia universalista que a revolução gerou".

Como Thomas Jefferson disse uma vez: "Estamos apontando o caminho para nações que lutam, que desejam, como nós, ter sua própria independência”.

Ideologia americana

É certo que a devoção dos Estados Unidos a seus ideais sempre foi incompleta e imperfeita. Nos seus primeiros anos, tolerou a escravidão e, nos últimos tempos, fez até acordos com ditadores. Os ideais nem sempre se traduziram em sucesso na política externa. Às vezes, como no Vietnã ou no Iraque, eles desviaram do foco. Mas, em geral, os Estados Unidos têm sido mais generosos e menos egoístas do que qualquer outra grande potência na história — e essa abordagem tornou a nação americana a mais bem sucedida do mundo nos últimos dois séculos.

No entanto, agora os próprios fundamentos da política externa americana estão sendo prejudicados por Donald Trump . O presidente retirou a Parceria Transpacífica e os acordos climáticos de Paris. Ele ainda questionou o futuro do Tratado de Livre Comércio da América do Norte e da OTAN. Trump brigou com aliados democráticos, do prefeito Sadiq Khan, de Londres, à chanceler Angela Merkel, da Alemanha, e, ao mesmo tempo, elogiou ditadores.

O presidente chamou Abdel Fattah al-Sisi do Egito de "um cara fantástico", Kim Jong Un da Coréia do Norte, um "biscoito inteligente", e Xi Jinping da China "um homem muito bom" que "ama o povo da China". Trump disse a Rodrigo Duterte, das Filipinas — responsável pela morte de pelo menos 7.000 pessoas sem o benefício de um julgamento — que ele está fazendo um "trabalho inacreditável com o problema das drogas". E também elogiou Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, por sua vitória em um referendo manipulado que foi amplamente visto como a morte da democracia turca.

Se Trump tem alguma preocupação com a democracia ou com os direitos humanos, ele não ainda não mostrou isso — exceto quando lutou para vencer o regime comunista em Havana e garantir votos cubano-americanos. Quando lhe foi pedido para condenar os assassinatos de opositores de Vladimir Putin, Trump se recusou a fazer isso, dizendo: "O quê? Você acha que o nosso país é tão inocente?"

Trump acha que o mundo compete por vantagens

Os conselheiros econômicos e de segurança do presidente Herbert Raymond McMaster e Gary Cohn falaram no dia 30 de maio ao Wall Street Journal que Trump acredita que "o mundo não é uma ‘comunidade global’, mas uma arena, onde as nações, organizações não-governamentais e empresas se envolvem para competir por vantagem. Ao invés de negar essa natureza elementar dos assuntos internacionais, nós o abraçamos". Em outras palavras, a administração de Trump rejeita os ideais do Iluminismo dos Fundadores e, em vez disso, abraça uma visão hobbesiana do mundo em que o estado natural da humanidade é uma "guerra perpétua de todo homem contra o próximo".

Vale a pena olhar rapidamente a importância dos valores americanos nas relações estrangeiras dos EUA para mostrar o que a ruptura profunda e imprudente que Trump está causando nas tradições americanas.

Então, vamos voltar ao início

Inicialmente, os americanos, como cidadãos de um país pequeno e vulnerável no litoral oriental da América do Norte, estavam conscientes das limitações de seus poderes e não começaram a "ir ao exterior, em busca de monstros para destruir", dizia a famosa frase de John Quincy Adams, de 1821. Mas eles forneceram apoio moral e material aos que lutavam pela liberdade, como os gregos que se revoltaram contra os Otomanos na década de 1820, e os húngaros que se revoltam contra os Habsburgos entre 1848 e 1849.

Em 1898, os Estados Unidos foram ainda mais longe. Acuados pela opressão colonial em Cuba e culpando a Espanha pela misteriosa explosão de um navio dos EUA no Porto de Havana, os americanos foram ao combate. A guerra hispano-americana pode ser sintetizada nas palavras do Senador John Sherman, de Ohio, "uma ação humanitária para pôr fim aos crimes... além de qualquer descrição".

Envolvimento dos EUA em guerras na Europa

O primeiro envolvimento da América em uma guerra europeia também foi guiado em grande parte por ideais que remontam à Declaração de Independência, embora ataques alemães contra um navio americano e tentativas de atrair o México para o conflito foram as causas imediatas.

Em 1917, Woodrow Wilson - 28º Presidente dos Estados Unidos, de 1913 a 1921 - recebeu uma declaração de guerra contra a Alemanha com a seguinte mensagem ao Congresso: "O direito é mais precioso do que a paz, e devemos lutar pelas coisas que sempre carregamos mais perto de nossos corações, pela democracia, pelo direito daqueles que se submetem à autoridade de ter uma voz em seus próprios governos, pelos direitos e liberdades das nações pequenas, por um domínio universal do direito, por um concerto de povos livres que trará paz e segurança a todas as nações e fará o próprio mundo livre”.

Seria dispensável dizer que essa seria a "guerra para acabar com todas as guerras" e o que esse era um esforço para "tornar o mundo seguro para a democracia". Obviamente esses objetivos não foram alcançados, muito pelo contrário, pouco mais do que duas décadas depois, outra guerra mundial estourou. 

Em 6 de janeiro de 1941, antes dos Estados Unidos terem entrado no conflito, o então presidente Franklin D. Roosevelt deixou claro que iria apoiar as democracias embargadas. “No futuro esperamos um mundo fundado em quatro liberdades humanas essenciais: a liberdade de expressão, a liberdade de religião, a ‘liberdade do do poder’ e a ‘liberdade’ de qualquer medo”. Liberdade, ele deixou claro, significava a supremacia dos direitos humanos em todos os lugares. “Nosso apoio é para aqueles que lutam para conquistar esses direitos e mantê-los”.

Criação de instituições internacionais

O compromisso idealista de Roosevelt, levado adiante por seus sucessores, levou à criação após a guerra das instituições internacionais — as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional , o Banco Mundial , o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (mais tarde se tornando Organização Mundial do Comércio - OMC), a OTAN — que Trump agora trata com hostilidade. De acordo com o espírito das "quatro liberdades", os Estados Unidos não impuseram uma paz cartaginesa aos estados do Eixo (Alemanha, Japão e Itália), do tipo que Trump defendeu quando advogou pelo roubo do petróleo do Iraque. Em vez disso, os Estados Unidos ofereceram o Plano Marshall para reconstruir sociedades destruídas e transformar inimigos em amigos.

Claro, Roosevelt teve que fazer certas concessões à realidade da época - daí a decisão de aliar-se ao regime assassino de Joseph Stalin e aceitar, em Yalta, que a União Soviética exerceria influência predominante na Europa Oriental. Mas os Estados Unidos nunca deixaram de resistir à propagação do comunismo. 

Em 1947, o vice-presidente e sucessor de Roosevelt anunciou a “Doutrina Truman” (conjunto de práticas do governo dos Estados Unidos que buscava conter a expansão do comunismo junto aos chamados "elos frágeis" do sistema capitalista), que prestaria assistência à Grécia e à Turquia, com estas palavras: "Estamos comprometidos com a proposição de que os princípios da moralidade e considerações para nossa própria segurança nunca nos permitirão concordar uma paz ditada pelos agressores e patrocinada pelos apaixonados pro violência. Sabemos que a paz duradoura não pode ser comprada à custa da liberdade de outras pessoas".

EUA na Guerra Fria

O registro dos EUA na Guerra Fria nao foram um apoio aos “guerreiros da liberdade”. Os Estados Unidos ajudaram a derrubar líderes esquerdistas democraticamente eleitos, como Mohammad Mosaddeh no Irã e Salvador Allende, no Chile, enquanto fazia acordos com ditadores como de Mobutu Sese Seko no Zaire e Fulgêncio Batista em Cuba, porque eram vistos como menos maus. Mas os Estados Unidos também implantaram democracia na Alemanha, na Itália e no Japão. 

Da zona desmilitarizada na Coréia até a Fulda Gap na Alemanha, os Estados Unidos arriscaram fazer uma guerra nuclear em defesa de seus aliados sem exigir nada em troca. A América também usou seus órgãos de informação, como a Voz da América e Radio Free Europe / Radio Liberty, para manter a esperança da liberdade viva atrás da Cortina de Ferro.

A principal exceção ao abraço do idealismo como componente crítico da política externa ocorreu na administração Nixon. Tanto Richard Nixon quanto seu principal estrategista de política estrangeira, Henry Kissinger, não permitiram que considerações sentimentais impedissem a promoção dos interesses dos EUA. Mas a administração de Nixon-Kissinger não foi tão bem sucedida como foi retratada: a abertura para a China, por exemplo, não impediu Pequim de apoiar a invasão do Vietnã do Sul, aliada americana, pelo Vietnã do Norte em 1975.

Declínio do poder americano

Com o poder dos EUA em declínio em meados da década de 1970, tanto os republicanos quanto os democratas procuraram fortalecer a liderança moral dos Estados Unidos. Eu não estaria sentado em Nova York escrevendo essas palavras se o Congresso não tivesse aprovado a emenda de Jackson-Vanik em 1974, vinculando o comércio dos EUA com a União Soviética à emigração judaica. Dois anos depois, minha família se mudou de Moscou para Los Angeles. Nesse mesmo ano Jimmy Carter assumiu a presidência prometendo revigorar os "princípios e valores" americanos tanto dentro do país como no exterior. Embora criticado pela ingenuidade, Carter ajudou a acabar com o domínio soviético na Europa Oriental, defendendo os direitos humanos.

Ele foi sucedido por Ronald Reagan, que fez um trabalho magistral juntando poder e direito. Em seu discurso pra trazer novas ideias, em 1982, no Palácio de Westminster, ele prometeu "fomentar a infraestrutura da democracia, o sistema de imprensa livre, sindicatos, partidos políticos, universidades, que permitem que um povo escolha seu próprio caminho para desenvolver sua própria cultura, para reconciliar suas próprias diferenças através de meios pacíficos".

Em cumprimento desta promessa, ele criou o National Endowment for Democracy, abraçou dissidentes por trás da Cortina de Ferro e financiou "lutadores da liberdade" do Afeganistão à Nicarágua (alguns dos quais se tornaram extremistas). Ele mesmo pediu a Mikhail Gorbachev para derrubar o Muro de Berlim. Essas ações ajudaram a acelerar o fim da Guerra Fria. É fácil, é claro, se opor à opressão feita pelos inimigos. Mas Reagan mostrou ser sincero em seu compromisso com a liberdade, defendendo transições democráticas, e trazendo mais aliados para os EUA, como El Salvador, Taiwan, Filipinas e Coréia do Sul.

Pós 11 de setembro

As preocupações em virtude dos direitos humanos continuaram a desempenhar um papel importante na política externa americana após o fim da Guerra Fria, levando a intervenções em locais como a Somália, o Haiti, a Bósnia e Kosovo. O idealismo na política externa dos EUA atingiu um nível preocupante após o 11 de setembro. Depois de ter feito o recolhimento da tropas americanas do Iraque e do Afeganistão, George W. Bush proclamou em seu segundo discurso inaugural que "é política dos Estados Unidos buscar e apoiar o crescimento de movimentos e instituições democráticas em cada nação e cultura, com o objetivo maior de acabar com a tirania em nosso mundo.”

Isso entrou em declive desde então, porque a democratização tornou-se associada ao custoso conflito no Iraque e às falhas da primavera árabe (onda de protestos, revoltas e revoluções populares contra governos do mundo árabe que eclodiu em 2011). A ONG Freedom House relata que a liberdade global está em declínio por 11 anos consecutivos.

Governo Obama e Trump

E isso não era tudo, pelo menos para os EUA, porém não há dúvida de que o presidente Barack Obama foi menos efetivo na promoção da democracia do que seu antecessor. Ao ajudar a derrubar Muammar al-Kadafi na Líbia, Obama retirou as tropas americanas do Iraque, ignorou o "Movimento Verde" no Irã e não interviu para parar o maior desastre de direitos humanos do século XXI: a guerra civil da Síria. Mas Donald Trump faz com que Barack Obama pareça com Woodrow Wilson, em uma comparação entre os dois. Trump não paga o tributo retórico à propagação da liberdade. O que o atual presidente não aprecia é que o "espírito de 76" tenha sido um fator crucial que prevalece na ascensão dos Estados Unidos para o mundo.

Toda hegemonia de grandes governos antigos — Espanha sob Filipe II, França sob Luís XIV e Napoleão, Alemanha sob Kaiser Guilherme e Adolf Hitler, a União Soviética sob Joseph Stalin e seus sucessores — inspiraram oposições decisivas de outros estados. Os Estados Unidos, ao contrário, despertaram menos oposição do que qualquer grande poder anterior, pelo simples motivo de que a maioria dos países não tem medo de nós. Eles sabem que não somos motivados por considerações puramente egoístas. Enquanto os Estados Unidos sempre procuraram promover seus interesses nacionais, o país também despertou interesses suficientes para incluir a defesa da liberdade em todo o mundo.

“América primeiro”

Trump ameaça esse entendimento com sua política "America First" (”Primeiro a América”). Ele acha que está protegendo os interesses dos EUA, mas, na realidade, ele está acabando com o "molho secreto" que é responsável pela grandeza dos Estados Unidos. Se os Estados Unidos perseguirem uma política de “eu primeiro”, todos os outros países seguirão o exemplo, e a lei da selva prevalecerá. Tal desenvolvimento irá colocar em perigo as conquistas de mais de 200 anos de política externa dos EUA, enraizada nos ideais da Declaração de Independência.

Max Boot é bolsista sênior para estudos de segurança nacional no Conselho de Relações Exteriores. Seu próximo livro se chamará "The Road Not Taken: Edward Lansdale and the American Tragedy in Vietnam"

Traduzido por: Guilherme Dias
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