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Argentina tacha de “maus” credores que exigem pagamento integral. Grafite em Buenos Aires diz: “Fora, abutres” | Marcos Brindicci/Reuters
Argentina tacha de “maus” credores que exigem pagamento integral. Grafite em Buenos Aires diz: “Fora, abutres”| Foto: Marcos Brindicci/Reuters

A Argentina declarou a moratória de sua dívida três vezes nos últimos 32 anos, inclusive no mês passado, o que a torna uma espécie de especialista no assunto.

Após não cumprir uma decisão judicial que obrigava o país a pagar US$ 1,3 bilhão a fundos especulativos americanos, o que barra seu acesso a mercados de crédito internacionais, a hashtag "Argentina vs. abutres" não enerva mais seus cidadãos. Eles consideram o imbróglio algo normal.

A Argentina está contestando a sentença do juiz Thomas Griesa, de Nova York, que proíbe o país de pagar a dívida reestruturada em 2002 sem que pague antes aos fundos de investimentos que aguardam o pagamento integral. O país divide seus credores em dois grupos: os bons, que concordaram em receber a dívida a uma taxa de 30 centavos por dólar; e os maus, que se recusaram a entrar em acordo, levaram seus casos a tribunais e venceram.

Todavia, os credores maus, também chamados de fundos abutres, ajudaram a presidente Cristina Fernández de Kirchner a ficar novamente em evidência. Ao enfrentar as aves de rapina do capitalismo, ela está tendo mais aprovação popular na Argentina, onde minguavam suas chances de permanecer no poder. Atualmente, está subindo nas pesquisas de opinião.

Em julho, Kirchner enfrentou o momento mais difícil de sua administração. Após 12 anos dos Kirchner no poder [ela sucedeu a seu marido, Néstor], suas políticas econômicas resultaram em uma taxa de inflação anual de até 40% (as estatísticas oficiais a reduzem para 10,9%), uma recessão firme e pouca esperança de crescimento econômico.

O casal Kirchner ascendeu ao poder após a crise e o calote da dívida em 2002. Entre aquela época e a crise atual, o isolamento dos mercados de crédito internacionais também separou a Argentina de outros governos sul-americanos de viés esquerdista, porém mais favoráveis ao mercado, como o Brasil e o Chile.

Com seu vice-presidente, Amado Boudou, sendo julgado por corrupção devido a seu envolvimento com a gráfica que imprime a moeda argentina, Kirchner estava ficando sem opções.

Em maio, ela tentou melhorar sua imagem criando uma agência com o nome orwelliano de Secretaria de Coordenação Estratégica do Pensamento Nacional. No entanto, os fundos especulativos acabaram ajudando sem querer a coordenar o pensamento nacional. A maioria dos argentinos acha justo desafiar o juiz Griesa e atrasar o pagamento, mesmo que isso signifique que os mercados de crédito considerem o país criminoso, pois o próprio sistema é repleto de falhas.

Os argentinos sempre admiraram personalidades desafiadoras. O escritor Jorge Luis Borges disse que o país simpatizava com "rebeldes do bem", aqueles que lutam contra leis injustas.

Kirchner assumiu o papel com aprumo: como Che Guevara ou o personagem literário argentino Martín Fierro, ela desafia a lei com boas intenções, uma heroína inflexível que nunca traiu seu povo e está disposta a desafiar os capitalistas.

Especialistas em crises, os argentinos são céticos sobre a utilidade dos mercados globais. "Aqui, nunca houve um culto ao deus do mercado", diz Mauricio Corbalán, 46, planejador urbano que mora em Buenos Aires. "As pessoas não confiam mais no especialista neoliberal que diz que é preciso pagar, custe o que custar."

Em meados de agosto, Kirchner fez uma aparição emotiva na televisão nacional. "Estou ciente de que estou tomando uma decisão importante e isso me deixa nervosa", disse ela, quase chorando. Explicou que o país estava tentando honrar os pagamentos de sua dívida, mas que fora impedido de fazer isso pela decisão do juiz Griesa. A China, a mais recente parceira comercial da Argentina, está ansiosa para ver essa questão resolvida. A Argentina começou a pagar dívidas anteriormente neste ano ao Clube de Paris e a outros credores, em uma tentativa malograda de reingressar nos mercados de crédito. Mas a decisão de Griesa interrompeu o caminho para a normalização, o que impede o país de receber investimentos estrangeiros que poderiam impulsionar a economia.

Líderes argentinos reagiram criando novas leis que darão mais poder ao governo para regular a economia.

Para domar a inflação, há um aplicativo para smartphone, "Preços Justos", que permite que os cidadãos "controlem" os preços. Tanto a Argentina quanto a Venezuela partilham a crença de que novas tecnologias podem aperfeiçoar a presença do governo na vida das pessoas, uma abordagem neossocialista que gerou duas das economias mais frágeis da América Latina. Na Casa Rosada, o ministro da Economia, Axel Kicilloff, tem dois apelidos, "Excel" e "O Soviético".

O ganho político com a briga com os abutres pode ser passageiro, pois a inflação e a estagnação persistem. No entanto, ele consolida o estilo de Kirchner como uma socialista que adora joias e a grife Ferragamo: "Existe apenas um muro à minha esquerda", disse ela recentemente.

Mas não é verdade. Entre o muro e Kirchner, os argentinos continuam enrascados.

Pola Oloixarac é autora de "As Teorias Selvagens" e "As Constelações Sombrias", que será lançado este ano.

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