• Carregando...
“A coisa mais importante que já me aconteceu é eu ainda estar vivo.” | Max Becherer para The New York Times
“A coisa mais importante que já me aconteceu é eu ainda estar vivo.”| Foto: Max Becherer para The New York Times

Alguns dias antes de seu romance ganhar um dos grandes prêmios da literatura em árabe, Ahmed Saadawi estava com amigos escritores num café de Bagdá, um lugar tão especial para ele que o incluiu em seu livro.

Cerca de uma hora após ele ter deixado o lugar, um homem-bomba atacou o café, ferindo vários de seus amigos e matando outros.

Foi uma experiência comum para Saadawi, como é para qualquer pessoa que tenha morado em Bagdá nos últimos dez anos. "A coisa mais importante que já me aconteceu é que ainda estou vivo".

Mas, enquanto alguns de seus amigos morreram ou deixaram o país, ele ficou. "É um conflito interno entre minha necessidade de escrever romances e estar ligado às pessoas e meu medo da morte e desejo de continuar vivo."

Saadawi está na vanguarda de um grupo pequeno de escritores que começa a interpretar, com a ficção, o trauma provocado pela invasão americana de 2003.

Seu romance, "Frankenstein in Baghdad", agraciado com o Prêmio Internacional de Ficção Arábica, é a história de um catador alcoólatra que recolhe pedaços de corpos dos locais onde explodem bombas e os costura para formar um corpo.

A figura formada passa a ser habitada por uma alma errante que parte em busca de vingança pelas vítimas. "Procuro reunir todos os elementos da experiência iraquiana", disse Saadawi. "Há muitas mensagens. Uma delas é que, nesta guerra, ninguém é inocente."

Numa cidade cujo patrimônio cultural é secular e grandioso, onde ruas e praças recebem os nomes de poetas que morreram há muito tempo, Saadawi, o primeiro iraquiano a receber o prêmio conhecido popularmente como o Booker Arábico, é o novo astro literário de Bagdá.

"Eles nos fez acreditar que o Iraque segue vivo e que somos nós que podemos fazer mudanças, se tivermos a vontade necessária", comentou Ibrahim Abdul Jabbar, outro romancista iraquiano.

Nascido em 1973, filho de um instrutor de autoescola, Saadawi cresceu na favela de Cidade Sadr, dominada por xiitas. Começou a escrever depois de formar-se numa faculdade de pedagogia.

Hoje casado, com quatro filhos, diz que vai usar os US$ 50 mil (R$ 112 mil) do prêmio para saldar as dívidas que acumulou enquanto escrevia ficção e alimentava suas outras paixões: desenhar charges e produzir documentários. "Não sou bom com dinheiro", explicou.

O café que aparece em seu livro reabriu logo após o ataque, algo que não chega a ser incomum em Bagdá, onde o vidraceiro às vezes aparece horas depois de explosões de bombas.

No dia depois de o café ser reaberto, seu proprietário, Mazin Hasham, que perdeu um irmão na explosão, comentou: "Estou triste demais para ler o livro".

O romance de Saadawi reflete sua visão de que a ficção é mais apropriada que o jornalismo para transmitir a experiência emocional de viver numa cidade onde níveis de violência extraordinários já se tornaram comuns.

"São coisas como a falta de confiança entre as pessoas, a ausência da lei, a ausência de segurança, o medo", ele disse.

A própria Bagdá emerge como personagem forte no romance de Saadawi, cidade que descreve como "distopia" e "inferno na terra".

A vida literária de Bagdá pode ser vista toda sexta-feira —o dia de descanso islâmico— sob a forma de uma espécie de feira animada na rua Mutanabbi, há séculos o centro dos livreiros da cidade.

Numa sexta-feira recente um homem procurava um exemplar de "Frankenstein in Baghdad" para levar para a Malásia, um destino de férias comum para os iraquianos por ser um dos poucos países para os quais não precisam de visto. Mas, como todo mundo, não encontrou o que procurava.

Um dos livreiros, Abbas Jasim, explicou: "Todo o mundo vem aqui pedir uma cópia desse livro, mas está esgotado. A demanda é grande demais."

Enquanto isso, Saadawi esperava na primeira fileira de um pequeno auditório lotado o momento de subir ao palco numa cerimônia em sua homenagem. Estava claro que estava gostando da fama recém-conquistada.

Ele clicou um "selfie", fez algumas observações breves e então, sorrindo o tempo todo, atendeu todas as pessoas que queriam ser fotografadas com ele.

Às pessoas que não tinham conseguido encontrar seu livro nas barracas da rua, disse que poderiam descarregar uma cópia de graça online.

A vida cultural de Bagdá vem sendo degradada ao longo de décadas de ditadura, sanções, invasão e ocupação. Escritores dizem que hoje é impossível ganhar a vida escrevendo.

Mas Saadawi transmitiu uma mensagem simples a seus colegas: "Tudo o que é preciso é uma mesa e um maço de cigarros".

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]