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O governo brasileiro contrata médicos cubanos para suprir as necessidades do SUS . Idarmis González, médica cubana, à mesa de trabalho, conversa com a mãe de criança doente | Mauricio Lima for The New York Times
O governo brasileiro contrata médicos cubanos para suprir as necessidades do SUS . Idarmis González, médica cubana, à mesa de trabalho, conversa com a mãe de criança doente| Foto: Mauricio Lima for The New York Times

As condições à volta do posto de saúde da imensa favela do Jacarezinho são as que a grande maioria dos médicos brasileiros prefere evitar, e incluem um grupo de traficantes de crack que atua ao longo dos trilhos do trem e o cheiro de um crematório de cães de rua que incomoda pacientes e funcionários.

"É claro que eu sabia que essa missão não seria fácil", diz Idarmis González, de 45 anos, que faz parte dos 4.500 médicos cubanos contratados pelo governo brasileiro para trabalhar nos vilarejos do Amazonas e nas favelas das grandes cidades. "Temos que ir aonde os outros não vão", conclui ela enquanto examina um garoto com desidratação e diarreia.

Depois de enfrentar uma onda de manifestações em 2013 em protesto ao nível deplorável dos serviços públicos, a presidente Dilma Rousseff reagiu contratando estrangeiros, passando por cima da resistência do Conselho de Medicina à decisão — que alegou haver um excesso de profissionais no país — para enviá-los às regiões brasileiras negligenciadas pelo sistema de saúde.

Porém, o projeto sinaliza uma ambição maior do governo brasileiro que, na verdade, pretende exercer influência em Cuba — onde, lentamente, a abertura do governo vai expondo o país às forças do mercado.

As exportações brasileiras para Cuba estão crescendo, e quadruplicaram nos últimos dez anos para alcançar os US$ 450 milhões/ano. A invasão das empresas sul-americanas na ilha reflete uma projeção sofisticada do "poder suave". "Esse é o Brasil fazendo um jogo estratégico de longo prazo no Caribe", afirma Julia E. Sweig, diretora de estudos latino-americanos do Conselho de Relações Exteriores.

Com isso, o país já é o terceiro maior parceiro comercial de Cuba, atrás apenas da China e da Venezuela que, como principal aliada da ilha e fornecedora de cem mil barris/dia de petróleo subsidiado, tem com sua liderança uma base ideológica forte; já no caso dos brasileiros, a relação é baseada nas oportunidades que surgem para as suas empresas.

Baseados nos programas assistenciais nacionais para aumentar as safras cubanas, os produtores brasileiros de soja e arroz também já se destacam como principais fornecedores de alimento da ilha — mas o grande projeto do Brasil em Cuba é a modernização do Porto de Mariel, no valor de US$ 900 milhões, fechado pela construtora Odebrecht.

Cuba também se beneficiará da situação: com a "importação" dos médicos, seu governo deve faturar US$ 270 milhões/ano, mas a verdade é que sua economia atualmente está numa fase instável, pois Venezuela e Cuba acabaram de adiar uma iniciativa de exploração de níquel no valor de US$ 700 milhões e suspenderam alguns outros projetos do mesmo tipo; por outro lado, as exportações chinesas para Cuba dispararam.

A chegada de milhares de médicos cubanos, em sua maioria negros, abalou o status quo da medicina brasileira e pôs em evidência tensões raciais e sociais. "Esses médicos de Cuba são escravos", disparou Wellington Galvão, presidente do Sindicato dos Médicos de Alagoas.

Os estrangeiros não podem levar as famílias para o Brasil e recebem apenas uma parte do salário mensal, que é de US$ 4.255; o resto é pago diretamente ao governo de seu país, que conta com uma nova fonte de dinheiro vivo.

Os defensores do projeto no Brasil dizem que a descrição dos médicos cubanos como "escravos" é um sinal de racismo enrustido e parcialidade da classe médica. A própria Dilma Rousseff criticou o que chamou de "preconceito" contra os cubanos.

De acordo com o Banco Mundial, o Brasil fica bem abaixo dos vizinhos Argentina e Uruguai, com apenas 1,8 médico para cada mil pessoas. A contratação de profissionais estrangeiros pode ser vista como uma jogada política inteligente por parte da presidente, que concorre à reeleição no ano que vem."Eu estou feliz em poder contar com um médico, seja cubano ou não", desabafa Sthefani Nogueira, de 21 anos, depois do exame ginecológico numa clínica do Realengo, no Rio, feito pelo médico cubano Israel Fernández, de 47 anos.

No entanto, nem tudo são flores na tentativa brasileira de estreitar os laços com Cuba: a Petrobrás, por exemplo, suspendeu a operação de exploração em águas caribenhas depois que as perfurações iniciais provaram se decepcionantes, o que representou um golpe nas ambições de aumento da produção petrolífera da ilha. Além disso, a Odebrecht está brigando com alguns cubanos naturalizados norte-americanos na justiça da Flórida em relação às atividades da empresa em Cuba.

A vantagem dos médicos é que, ao voltarem para casa, levarão uma nova perspectiva por terem testemunhado de perto a reação do governo brasileiro aos protestos de rua e outras formas de dissidência política.

"O Brasil serve de modelo para nós porque conseguiu desenvolver sua economia com paz e através de um consenso", reflete Roberto Veiga, editor de uma revista cubana.

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