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Jeremy Charles faz parte do movimento de valorização da culinária do Norte | Chris Crockwell /The New York Times
Jeremy Charles faz parte do movimento de valorização da culinária do Norte| Foto: Chris Crockwell /The New York Times

Jeremy Charles tombou a frigideira sobre a chama e jogou manteiga quente sobre as vieiras. Alguém lhe entregou um raminho da erva – que ele debulhou na panela e o ar se encheu dos aromas inebriantes de frutos do mar fresco, chá quente, tomilho, manteiga e fumaça de madeira.

Charles, chef do aclamado Raymonds, em St. John’s, e líder de um movimento de valorização da culinária do Norte, estava tão decidido a exibir a essência de seus pratos que, ao lado de um colega e dois mergulhadores, levou um barquinho a uma praia isolada, coberta de pedras. Mesmo no verão, a água aqui ainda é fria a ponto de manter os icebergs que saem do sul da Groenlândia. Apesar disso, os mergulhadores pularam na água para recolher vieiras.

“Não quero voltar para a civilização. Morro de saudade da minha mulher e das crianças, mas toda vez que saio para caçar ou pescar assim, sinto vontade de nunca mais voltar para casa”, confessa Charles, 37 anos, enquanto as vieiras estalavam sobre o fogo.

Os chefs de algumas das regiões mais frias da América do Norte estão promovendo uma iniciativa de ir além de seu habitat. Da Nova Inglaterra até as Províncias Marítimas do Canadá e oeste, a Montreal e Toronto, eles estão fazendo um trabalho culinário que levanta questões para as quais não há respostas simples: o que é exatamente a culinária do Norte? Como tornar essa identidade clara aos clientes?

A cozinha do Sul conseguiu se caracterizar graças a pratos superfamosos como camarão, canjiquinha, jambalaya e torta de noz pecã, mas a gastronomia do Norte dá a impressão de ser mais difícil de definir. É o poutine em Montreal? Chowder em Boston? Mexilhão frito? Será que um território tão amplo tem sabores comuns?

“A coisa mais importante que aprendi é que rola um conceito completamente distorcido. Ainda tem esse estigma de que os pratos da Nova Inglaterra são cremosos, pesados e que fazem mal”, se queixa Matt Jennings, 38 anos, que abriu o Townsman em Boston, em fevereiro, e serve de líder extraoficial de um grupo de chefs norte-americanos e canadenses conhecido como a Aliança dos Chefs do Norte.

No restaurante, ao lado da equipe, ele se destaca por reinventar os clássicos — como sua versão para o chowder (sopa cremosa de mariscos), coberta com biscoitinhos negros, feitos com tinta de lula, preparada com creme de leite da Fazenda Mapleline de Hadley, Massachusetts, e presunto, consegue ser mais leve que as outras, embora carregada de novos sabores.

A Aliança dos Chefs do Norte, que Jennings ajudou a criar há quatro anos principalmente porque queria passar mais tempo com amigos canadenses como Matty Matheson, do Parts & Labour de Toronto e Derek Dammann, do Maison Publique de Montreal, se reúne todo ano, no verão. Seus membros valorizam os ingredientes locais, arrecadam dinheiro para instituições de caridade e destacam os pratos da cozinha regional.

“Mesmo tendo uma culinária nativa há centenas de anos, a gastronomia canadense continua sendo uma página em branco para os gourmets e curiosos que vão a restaurantes de clima frio, como o Noma dinamarquês”, afirma Dammann, 38 anos.

No Maison Publique ele gosta de servir pratos mediterrâneos como os boquerones, ou anchovas em espanhol, que ele troca pelo capelin, peixe usado como isca no norte do Atlântico. “Temos aqui recursos para fazer o que todos esses países de culinária rica, como Espanha e Itália, fazem. E, de quebra, por termos um território tão grande, temos também animais e plantas silvestres”, completa.

No restaurante Manitoba, de Montreal, Chris Parasiuk, 25 anos, vem desenvolvendo o que descreveu em uma entrevista por telefone como “culinária de luxo de acampamento”, com o uso de ingredientes como rim de veado, pescoço de bacalhau, frutas vermelhas da região e gelatina feita de chá do Labrador.

No Boralia de Toronto, os sócios Evelyn Wu, 34 anos, e Wayne Morris, 33, que também são casados, geralmente vão buscar receitas no passado – como um antigo prato francês, o éclade, que chegou ao Canadá no início do século XVII, no qual os mexilhões são cobertos por agulhas de pinheiro secos, às quais se ateia fogo para assar o molusco.

“Ficamos bem animados quando descobrimos”, conta Wayne — quer dizer, nem tanto. Em vez de fazer fogueira na cozinha, eles preferiram misturar o sabor das cinzas das agulhas à manteiga e servir os mexilhões sob uma cúpula de fumaça.

Se o novo interesse na culinária do Norte tem um representante, certamente é Charles, que tem o jeitão e a cara dos pescadores de baleia do século XIX. A Terra Nova é um dos poucos lugares na América do Norte onde ainda se pode servir carne de animais selvagens, o que significa que quando você encontrar opções como carne de alce, lebre-ártica ou perdiz no cardápio do Raymonds, o garçom vai avisá-lo para tomar cuidado com os estilhaços de munição que pode encontrar entranhados nas fibras.

“Se caçamos um alce, uma semana depois ele está no cardápio”, conta ele. “Na verdade, estamos fazendo o que dissemos que íamos fazer: sair para buscar o que há na água e nas florestas”, conclui.

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