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Mugabe, presidente do Zimbábue, segundo da esquerda para a direita, em uma cerimônia em Fort Hare, em 2003 | Alan Eaton/Associated Press
Mugabe, presidente do Zimbábue, segundo da esquerda para a direita, em uma cerimônia em Fort Hare, em 2003| Foto: Alan Eaton/Associated Press
  • Mandela deixou Fort Hare após conflito com diferente, mas recebeu o diploma anos depois

Das centenas de páginas da autobiografia de Nelson Mandela, "Longa Caminhada Até a Liberdade", pouco mais de uma dúzia conta sua formação superior na Universidade de Fort Hare, fundada por missionários cristãos brancos. Ele passou menos de dois de seus 95 anos lá. Mandela deixou Fort Hare no meio dos estudos, após um conflito com o líder da instituição, um evangelista escocês chamado Alexander Kerr, a respeito do boicote estudantil às eleições universitárias.

"Naquele momento, eu vi o dr. Kerr menos como um benfeitor e mais como um ditador não tão benigno", escreveu Mandela em suas memórias. A respeito de si próprio, um jovem de 22 anos no fim de 1940, ele diz: "me senti em um estado desagradável de limbo".

As emoções ambíguas expressas por Mandela estavam longe de ser uma exclusividade sua. A empreitada das escolas missionárias na África estava inserida em um cruzamento ambíguo e contestado. Ela fazia parte do colonialismo, embora educasse estudantes que se opunham ao colonialismo. Ela evitava o envolvimento político, mas inspirava a busca pela igualdade racial por meio de seus ideais religiosos.

Após a morte de Mandela, a educação missionária passou por uma reavaliação mais positiva. O próprio Mandela acabou por receber o título de bacharel pela Fort Hare pelos cursos que fez fora do campus e, em 2006, foi fotografado alegremente com seu paletó da universidade.

Por maiores que fossem suas falhas – condescendência, timidez, elitismo – universidades como Fort Hare produziram não apenas Mandela, mas uma série de líderes sul-africanos. Oliver Tambo, do Congresso Nacional Africano, Chris Hani, do Partido Comunista, Mangosuthu Buthelezi, do Partido Inkatha Freedom e Robert Sobukwe do Congresso Pan-Africanista, todos formados pela Fort Hare. (Um aluno menos celebrado é Robert Mugabe, o ditador do Zimbábue.)

A Lovedale, outra faculdade missionária, teve como aluno Thabo Mbeki, que se tornou o segundo presidente pós-apartheid da África do Sul. Steve Biko, que veio a se tornar o líder do movimento Consciência Negra, frequentou um internato católico, St. Francis. Albert J. Luthuli, vencedor do prêmio Nobel, estudou e foi professor no Adams College, fundado por missionários americanos.

As faculdades missionárias obtiveram conquistas tanto propositadas quanto não intencionais. Os fundadores e professores eram claramente contrários às lideranças coloniais, acreditando na possibilidade de educação dos negros africanos e em sua capacidade de salvação através de Cristo. Ainda assim, essas crenças estavam muito longe da teologia da libertação.

"Não estou criando heróis missionários", afirmou Richard H. Elphick, autor de "The Equality of Believers" (a igualdade dos crentes, em tradução literal), um livro sobre os missionários protestantes na África do Sul. "Os missionários e outros cristãos brancos ficavam alarmados com a ideia de que a igualdade de todos os povos perante Deus significasse que todos são iguais na vida pública. Porém, a igualdade dos crentes é uma ideia que levaram para a África do Sul e que era constantemente reforçada nas faculdades. Isso deu origem a uma ideia muito perigosa."

A educação missionária era virtualmente a única forma de educação formal disponível para os negros africanos durante boa parte da era colonial. A primeira escola missionária da Nigéria abriu as portas em 1859, 50 anos antes da primeira escola do governo. Em meados dos anos 1920, as escolas missionárias educavam muito mais africanos (cerca de 215 mil, comparados com cerca de 7 mil) que as escolas do Estado, de acordo com cálculos do dr. Elphick.

"Para jovens negros sul-africanos como eu", escreveu Mandela em sua autobiografia, "aquilo era Oxford e Cambridge, Harvard e Yale, tudo concentrado em um único lugar".

Além de ser importante para a pessoa que Mandela se tornaria, Fort Hare o colocou em uma comunidade multirracial, afirmou Daniel Massey, autor de "Under Protest" (sob protesto), uma história do ativismo político na universidade. Os colegas de classe de Mandela incluíam estudantes indianos e "de cor", além de até mesmo alguns filhos brancos de membros do corpo docente.

Por todas essas razões, as faculdades missionárias se tornaram um anátema para os nacionalistas africâneres. Em uma palestra de 1938, o líder político Daniel Malan alertava sobre o número crescente de "não brancos civilizados e educados que desejam compartilhar nossa forma de vida e alcançar todos os tipos de igualdade conosco".

Nos doze anos depois de conquistar a maioria nas eleições sul-africanas em 1948, os nacionalistas africâneres passaram a subordinar as escolas missionárias ao poder do Estado, impondo a segregação do apartheid por categoria racial e identidade tribal, além de exigir que os cursos fossem ministrados em idiomas africanos, ao invés de inglês.

Assim como boa parte da África do Sul, isso mudou após a saída de Mandela da prisão e a transição para o governo da maioria. Em outubro de 1991, Oliver Tambo, aliado político e colega de classe de Mandela, foi nomeado chanceler de Fort Hare. Em seu discurso de posse, mesmo enquanto reconhecia a luta de seus dias de estudante, Tambo entoou o lema da universidade: "Em sua luz, deixe-nos ver a luz".

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