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A falta de combustível e farinha fechou muitas padarias e a produção agrícola despencou. Uma mulher consola o neto | ASSOCIATED PRESS
A falta de combustível e farinha fechou muitas padarias e a produção agrícola despencou. Uma mulher consola o neto| Foto: ASSOCIATED PRESS

A vida de Rana Obaid, filha de um comerciante, começou há menos de dois anos, mas a guerra e o cerco levaram a fome à cidadezinha onde sua família vivia, perto de Damasco, com tamanha rapidez que quando ela morreu, em setembro, seus braços e pernas mais pareciam gravetos.

No vilarejo vizinho, uma mulher com um filho que sofre de insuficiência renal tem que fazer as crianças comerem em dias alternados. Na região da periferia de Aleppo, no norte da Síria, a maioria sobrevive à base de mato.

Funcionários de agências humanitárias contam que as crianças refugiadas sírias chegam ao norte do Líbano magras e subdesenvolvidas e já se suspeita de casos de desnutrição tanto nas áreas tomadas pelos rebeldes, no norte, como na região sul de Damasco.

Por todo o país, que sempre teve orgulho de oferecer alimento a preços acessíveis a seu povo, os esforços locais e internacionais para garantir o sustento básico em meio ao caos da guerra parecem ser em vão. A fome atinge milhões de pessoas em vários níveis diferentes e há provas cada vez mais contundentes de que a desnutrição grave é culpada por um número de mortes ainda pequeno, mas que tende a crescer, principalmente entre crianças pequenas, feridos e doentes, dizem os funcionários humanitários e especialistas em nutrição. Eles também avisam que, se a crise se estender no inverno, as mortes causadas pela fome e pelas doenças poderão superar as causadas pela violência, que já fez bem mais de cem mil vítimas.

Não se sabe o número exato de pessoas afetadas, mas o que não falta são evidências da escassez. Segundo voluntários e moradores, o governo está usando o cerco e a fome como táticas de guerra. Eles contam que nos pontos de verificação, os soldados confiscam todo tipo de alimento, mesmo em quantidades mínimas. Os rebeldes também passaram a bloquear as áreas em poder do governo e ameaçam os comboios que levam comida.

Mesmo para aqueles que vivem em áreas mais acessíveis, a chamada "insegurança alimentar" já faz parte do dia-a-dia. A inflação tornou os suprimentos inacessíveis a muitos; a falta de combustível e farinha fechou várias padarias — e as que continuam funcionando são arriscadas a sofrer ataques do Exército; a produção agrícola praticamente não existe e embora o Programa Alimentar Mundial afirme que abastece até três milhões de sírios por mês, seus funcionários só garantem a entrega nos depósitos centrais.

A falta de atendimento médico e água potável só torna a situação mais dramática, assim como o fato de os sírios terem pouca experiência em tratamento de desnutrição. Mais preocupantes ainda são os relatos de mães que deixam de amamentar os filhos sem saber que esse é o único meio de mantê-los vivos, mesmo que elas estejam desnutridas.

A improbabilidade da fome na Síria confunde e irrita aqueles que sofrem com ela. "É estranho saber que a comida está a apenas cinco minutos da gente", diz Qusai Zakarya, porta-voz de um conselho rebelde em Moadhamiya, referindo-se à conversa que teve por telefone com um amigo que comia um cheeseburger perto do ponto de verificação vizinho.

Sawsan, uma viúva de 33 anos de Hajar al-Aswad, contou pelo Skype que sua família, incluindo o garoto com problemas renais que não faz diálise há seis meses, obedece a um "rodízio alimentar em que ninguém come todo dia".

Abu Hazem, um taxista de 43 anos de Moadhamiya, afirma que alimenta os cinco filhos com uma ração magra de lentilhas, às vezes misturada com grama, e confessa que já matou um cachorro para comer. E diz que as crianças nem choram mais de fome. "Às vezes, quando a coisa aperta, elas começam a cantar."

Há meses não há carne, leite nem ovos em Moadhamiya e, em agosto, o macarrão acabou. Sobraram apenas azeitonas e mato — e as pessoas começaram a morrer, como relata Zakarya. Ele mostrou alguns relatórios médicos e vídeos.

Primeiro foi Ammar Arafa, de oito anos, um garoto deficiente que vivia à base da fórmula PediaSure, que, como os remédios que tinha que tomar, era inacessível; havia também Ibrahim Khalil, de quatro anos, que era só pele e ossos.Imad Sawan, de cinco anos, foi ferido durante um ataque e não se saiu bem de uma cirurgia intestinal, cuja recuperação exigia alimentação especial. O mesmo aconteceu com Mona Ragab, de trinta anos.

Rana Obaid, a filha do comerciante, nasceu pequenina e fraca. Acabou se desenvolvendo normalmente, mesmo depois que a casa da família foi destruída por um ataque e eles tiveram que se mudar para um apartamento abandonado. A falta de alimentação adequada, porém, a fez adoecer e emagrecer.

Ela foi filmada deitada na maca de um hospital improvisado, os olhos brilhantes fixos na câmera enquanto o médico apalpava gentilmente seu abdome inchado, as costelas saltadas, as gengivas sangrando. As imagens seguintes mostravam seu cadáver diminuto.

"A minha filhinha querida parecia um fantasma. Eu não pude fazer nada", disse Abu Bilal a Zakarya, que tem um filho de sete anos, "mas estou aliviado. Sei que ela está com Deus, em paz. Não sente mais fome nem frio nem tem medo dos bombardeios".

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