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 | Daniel Berehulak para The New York Times
| Foto: Daniel Berehulak para The New York Times
  • O ebola é apenas mais uma crise para os liberianos
  • Liberianos fazem o melhor possível contra doença. Agentes levam irmã de uma mulher para ser cremada em Monróvi

Liberianos se acostumaram a conviver com demônios.

Muito antes da chegada do ebola, a população local foi duramente atingida por 14 anos de uma guerra civil que ceifou 200 mil vidas e incitou atos de barbárie, deixando cicatrizes profundas no país. A guerra produziu generais ensandecidos que, totalmente nus, a não ser por sapatos nos pés e armas nas mãos, realizavam sacrifícios rituais de crianças antes das batalhas. O conflito também produziu combatentes de 10 anos de idade movidos por anfetamina, armados com M16 e com mochilas de ursinho nas costas, assim como estupradores que usavam máscaras e vestidos de noiva.

Quando finalmente terminou, em 2003, a guerra moldou uma nação de sobreviventes, na qual praticamente todas as pessoas com um mínimo de discernimento têm uma história dolorosa para contar. Como uma liberiana que emigrou para os Estados Unidos, eu conheço tudo isso profundamente. Minha família também tem histórias relacionadas à guerra. Uma irmã foi sequestrada e lutou para proteger seu filho de 1 ano enquanto marchou durante dias atrás das linhas rebeldes. Outra irmã passou nada menos que dois anos escondida em uma área do país conhecida como Território 3C, após ver pistoleiros estriparem um colega de trabalho diante do filho dele.

Faz tempo que parei de perguntar às pessoas sobre suas experiências durante a guerra. Todavia, ao circular nas últimas semanas por esta cidade, onde nasci, para fazer reportagens sobre a epidemia de ebola, percebi pela primeira vez que aqui há uma força admirável.

Meu amigo libanês Wael Hariz, que mora aqui e se ausentou por dois meses, disse que voltou no final de setembro esperando o pior após acompanhar no exterior as notícias sobre o ebola. Observando o movimento de carros e pedestres no Tubman Boulevard, a principal via pública de Monróvia, ele comentou: "Eu havia esquecido o quanto as pessoas aqui são resistentes".

Essa resistência foi duramente adquirida. Este lugar lindo tem florestas tropicais e praias limpas com areias brancas. No entanto, o liberiano comum sobrevive com US$ 1,25 por dia e não tem acesso a água limpa nem a banheiro com descarga em casa. O liberiano comum mora com a mãe, o pai, a tia, o tio e primos, partilhando colchões em barracos minúsculos de dois cômodos. Quando algum membro da família adoece, o liberiano comum anda por ruas de terra esburacadas até o Tubman Boulevard para achar um táxi que o leve com a pessoa doente à clínica mais próxima.

No mês passado, quando um hospital privado se recusou a atendê-la, Comfort Fayiah, 32, deu à luz na rua de terra perto da Du Port Road. Transeuntes a cercaram para dar um mínimo de privacidade, enquanto uma mulher e um homem ajudaram a fazer o parto das duas gêmeas.

Obviamente, o novo demônio é o ebola, que já matou cerca de 2.500 liberianos e contaminou quase o dobro desse número, incapacitou o sistema de saúde do país, paralisou a economia e transformou qualquer pessoa com passaporte liberiano em pária internacional.

Todavia, muitos liberianos estão lidando com a doença com a mesma resignação demonstrada com os exterminadores do passado —aceitando que a ameaça é real e fazendo o melhor possível para driblá-la. Eles lavam as mãos com cloro, submetem-se a exames de temperatura nos termômetros a laser nas entradas de edifícios públicos e ainda cuidam de parentes doentes, pois não há outra alternativa.

Tenho tentado ter a mesma serenidade que meus compatriotas liberianos, mas já moro há muito tempo nos EUA e não consigo deixar de me preocupar. Minha irmã mais velha é agente de saúde na Libéria e está profundamente envolvida no combate ao ebola. Outra irmã, Eunice, é gerente de assistência social na empresa de pneus americana Firestone; todo dia aposentados fazem fila diante do escritório dela, a 56 km de Monróvia, e lhe estendem as mãos para receber seus cheques. Minha sobrinha de 9 anos, Nyepu, que tem anemia falciforme, está isolada em casa desde julho.

Ao visitar Eunice, avisei Nyepu para não tocar em mim, pois eu havia estado em uma unidade de tratamento de ebola.

Dois dias após minha chegada a Monróvia, surgiu a notícia de que o primeiro caso de ebola nos EUA fora diagnosticado no Hospital Presbiteriano em Dallas, Texas. As autoridades americanas inicialmente não revelaram o nome do paciente, citando o caráter confidencial da informação, mas o ministro da Saúde da Libéria, doutor Walter T. Gwenigale, discordou disso. "Não há privacidade quando o assunto é ebola", disse.

Assim como a população dos EUA, todos em Monróvia comentavam o caso de Thomas Eric Duncan, o paciente de Dallas. A maior dúvida por aqui era se os EUA impediriam liberianos de viajarem para lá, embora sejam raros os que conseguem vistos. E o que aconteceria se o presidente Obama retirasse as tropas americanas que enviou para a construção de unidades de tratamento? Após a morte de Duncan, a primeira vítima fatal de ebola nos EUA, houve suspeitas em Monróvia sobre os governos de ambos os países. Uma amiga me disse: "Eles queriam que a morte de Duncan servisse de lição para não tentarmos ir para os EUA na esperança de vencer a doença".

Seu tom era categórico. Aqui, a vida envolve um altorisco.

Há cerca de uma semana, viajei pelo país fazendo uma reportagem sobre a presidente Ellen Johnson Sirleaf. Fiz um pernoite em Gbarnga, mas tive que voltar às 5h para Monróvia, que fica a quatro horas de distância. Um agente de segurança da presidente que eu conheço, Varsay Sirleaf, entrou no carro comigo. "Ela não quer que você viaje sozinha", disse. Seria inútil argumentar.

Além disso, a estrada estava escura e tinha um trecho de terra esburacado. Cerca de 30 minutos após a partida, no trecho mais escuro da estrada, os faróis dianteiros iluminaram algo no acostamento. "Pare!", gritou Varsay. "É um corpo!" Ele saiu do carro com uma lanterna e uma pistola, e ordenou: "Tranque as portas".

Pensei imediatamente na guerra civil e imaginei soldados mágicos surgindo das matas. Estava tudo silencioso, mas meu coração disparou.

Finalmente, Varsay voltou, contando o seguinte: "Ele não estava morto, apenas bêbado. Eu o acordei e ele entrou no mato".

Eu não me conformava que ele houvesse ido averiguar um corpo no acostamento da estrada. "Poderia ser uma emboscada!", gritei. "Ele poderia ter ebola!"

Varsay me encarou.

"É assim que vocês agem nos EUA?", perguntou.

Ele se virou, olhou para a frente e então disse: "É inadmissível deixar alguém morrendo no acostamento da estrada".

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