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Uma mulher usa roupa de inspiração norte-americana em uma rua de Havana | Tomas Munita para The New York Times
Uma mulher usa roupa de inspiração norte-americana em uma rua de Havana| Foto: Tomas Munita para The New York Times
  • Depois de mais de 50 anos de hostilidades, Cuba ainda é atingida pelo excesso de propaganda anti-americana. Retratos de ex-presidentes norte-americanos sob a placa que diz

John F. Kennedy, que introduziu as sanções econômicas contra Cuba, em 1961, ganhou uma sala inteira dedicada aos seus pecados, mas a última parte da mostra, em cartaz no palacete que abriga o Museu da Revolução, na parte velha de Havana, traz uma "galeria de cretinos": recortes em estilo de HQ dos presidentes norte-americanos mais recentes, reconhecidos por "ajudarem a fortalecer a Revolução".

A fila termina em George W. Bush e levanta a seguinte questão: e o presidente Obama?

Será que vai acabar nessa galeria? Ou será que esse é o fim do desfile dos odiados?

Enquanto ainda absorvem a notícia de que os EUA vão começar a normalizar as relações com seu governo depois de mais de 50 anos de hostilidades, os cubanos tentam equilibrar a alegria e a incerteza. Os líderes, depois de décadas brigando e culpando os EUA e os exilados, agora se veem sem as desculpas de sempre para os problemas econômicos do país e as restrições aos direitos humanos.

Administrar a abertura da ilha fará com que o governo confronte as próprias falhas e aceite a ideia de que se tornará apenas mais um país caribenho, e não mais um reduto comunista admirado por se opor ao poderio dos norte-americanos.

"Passamos 50 anos trocando insultos; agora temos que reconstruir essa relação e tentar superar anos de ódio", constata Leonardo Padura, o romancista mais famoso de Cuba, em sua casa em um subúrbio da capital.

"É como acordar de um pesadelo que parecia não ter fim. Muitas vezes achei que fosse morrer antes de ver esse dia", conclui.

O anúncio da normalização das relações foi bem-recebido pela maioria da população,

mas há tempos a ilha se vê como um caso excepcional, um rebelde sob ataque político e econômico constante. O relacionamento melhor com os EUA pode até gerar uma ajuda econômica imediata, mas também vai fazer surgir questões de identidade.

Desde o início dos anos 60 Cuba se identifica com o socialismo e o papel de Davi em relação ao Golias do norte; agora, seus nativos estão tendo que lidar com a nova realidade e as mudanças que pretendem introduzir uma dose de capitalismo de mercado em um sistema no qual o Estado fornecia tudo, desde o açúcar subsidiado até assistência médica gratuita, passando pelos carros a que somente certos privilegiados tinham direito.

De repente o povo percebeu que não pode mais culpar o velho inimigo por todos os seus problemas – e muitos garantem que já sabiam disso há tempos.

"Sempre nos disseram que tudo de ruim que acontece aqui é culpa dos EUA, mas há anos isso não é mais verdade. Agora o governo finalmente está admitindo isso", afirma Chuchi Garrido, que vende celulares contrabandeados ao lado de uma loja estatal na capital, enfatizando o absurdo da ideia.

A blogueira Regina Coyula, que passou quase vinte anos batalhando por segurança, diz que os cubanos deviam se sentir felizes de poderem deixar a desconformidade para trás.

"Já está mais que na hora de sermos normais, virarmos apenas uma ilha como outra qualquer. Vivemos numa bolha, mas queremos fazer parte da comunidade global", diz ela.

Entretanto, as tensões e a resistência ao fato são visíveis. "Todo país tem o direito inalienável de escolher seu próprio sistema político. Ninguém pode afirmar que, ao melhorar as relações com os EUA, Cuba estará renunciando a seus ideais", afirmou Raúl Castro em discurso recente ao Legislativo, enfatizando o longo histórico de resistência ao "imperialismo".

Uma injeção de capitalismo, de cultura norte-americana e uma dose maior de desigualdade social não parecem preocupar tanto os nativos de Matanzas e Havana quanto a proteção aos pilares do Estado socializado: a saúde pública e o sistema educacional de qualidade.

Os cubanos continuam sendo bombardeados com propaganda anti-americana: além dos outdoors que denunciam o embargo como "o pior genocídio da história da humanidade", há fotos do Cuban Five – quinteto acusado de espionagem cujos três últimos membros foram soltos nos EUA – nas paredes de quase todos os prédios públicos. Os livros escolares continuam a retratar os norte-americanos como verdadeiros vilões.

A mensagem oficial de "boas-vindas" aos EUA significa que as ruas de Havana terão tráfego mais intenso, a procura por imóveis, mais intensa e o mar que cerca a ilha, hoje praticamente vazio, logo estará lotado de iates de doze metros com registro da Flórida.

Mais importante para os cubanos é o que vai acontecer às restrições dos direitos civis. A demanda por celulares e pela Internet é intensa; as filas em qualquer loja de telefonia móvel na capital têm pelo menos cem pessoas.

"O pessoal está descobrindo as novidades de comunicação e quer participar", filosofa Garrido, o vendedor de telefones.

A oposição cubana também parece dividida diante o impacto da mudança, com os líderes dissidentes mais radicais consternados. "Obama cometeu um erro grave; traiu aqueles de nós que lutavam contra o governo cubano", lamenta Ángel Moya, ativista político que passou oito anos preso e foi libertado em 2012.

Para Elizabeth Newhouse, diretora do projeto Cuba do Centro para Políticas Internacionais, que defendia a suspensão do embargo, os dois países terão que encontrar uma nova forma de se relacionarem.

"Raúl vem amenizando a ideia de que os EUA são o inimigo há um tempo, deixando de culpá-los pelas consequências do embargo; só que não só a medida como seus efeitos estão aí, presentes nas ruas – e como não será suspenso tão cedo, duvido que a percepção mude. Resta saber se seremos inimigos amigos ou o quê?"

Contribuiu Randal C. Archibold

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