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Não faz muito tempo, eu estava com alguns amigos em Taft Point, penhasco que se eleva 900 metros acima do chão do vale de Yosemite, na Califórnia. Ao nos aproximarmos da beira do abismo, começamos a tremer. Senti um pavor primitivo da morte, e esse medo me impediu de dar mais um passo.

A alegria consistia em estar em um ponto próprio para espécies que voam com as próprias asas.

No dia 16 de maio, Dean Potter e um jovem assistente, Graham Hunt, foram ao mesmo lugar na hora do pôr do sol, com o plano de saltar. Não se tratava de suicídio, na acepção convencional do termo. Potter já tinha dado esse salto muitas vezes antes. Era um esporte: base jumping com wingsuit.

Não havia no mundo ninguém melhor que ele na tentativa de imitar um esquilo voador, voando a mais de 160 km/h. Dean Potter passou 22 anos desafiando os limites —e as leis—do que constitui uma maneira aceitável de um ser humano interagir com os penhascos de granito de Yosemite.

Naquele fim de tarde de sábado, Potter e Hunt saltaram. Mal chegaram a ficar 40 segundos no ar, tentando ultrapassar uma pequena saliência, quando se chocaram com o paredão rochoso e morreram no impacto. Potter tinha 43 anos, Hunt, 29. Tudo foi capturado numa câmera GoPro acoplada ao capacete de Potter.

O apelido de Potter era “Dark Wizard” (Mago das Trevas). Em outros tempos, o que ele fazia —andar por cima das cachoeiras de Yosemite em uma “slackline” (corda bamba não retesada), escalar paredões verticais sem cordas e saltar de penhascos para ser salvo no último instante por um paraquedas— teria sido descrito como insanidade ou como acrobacias de circo. Potter o descrevia como “artes perigosas”.

Ele era uma figura cult, tendo sido nomeado “aventureiro do ano” pela “National Geographic” depois de saltar do monte Eiger, na Suíça, em 2009, e criou toda uma filosofia em torno das formas acrobáticas de brincar com a morte. Potter chegava a voar com seu cachorrinho de estimação, Whisper, preso às costas.

“Converter a morte em voo é uma metáfora de meu princípio básico de vida”, disse. Com o base jumping (o nome do esporte vem da sigla B.A.S.E., de “building, antenna, span and earth”, ou, em português, “prédio, antena, ponte e penhasco”), Potter desafiou os deuses a queimar suas asas.

Mas o homem também possui cérebro. Há diferença entre usar a inteligência humana para “escapar das correntes pesadas da Terra”, como escreveu o poeta e aviador John Magee, e a estupidez.

Os irmãos Wright eram inventores meticulosos, dotados de conhecimentos de engenharia, que conseguiram escapar das correntes por 12 segundos, em 1903, com sua máquina voadora. Homens modestos, eles não o fizeram pela emoção, embora o desejo milenar que as pessoas têm de voar fosse uma de suas motivações.

“Há alguns anos eu sou afligido pela crença de que voar é possível para o homem”, escreveu Wilbur Wright, três anos antes de ele e seu irmão realizarem a proeza. “Minha enfermidade vem se intensificando, e sinto que em breve vai me custar mais dinheiro, senão minha vida.”

Mais adiante no século, quando Neil Armstrong tornou-se a primeira pessoa a andar na Lua, ele levou com ele um pedacinho do avião original dos Wright. O que liga os irmãos Wright aos astronautas que andaram na Lua é o planejamento baseado na imaginação, nascido de cálculos cuidadosos para reduzir os riscos.

O que Dean Potter fez com sua vida, e o que o levou à morte, foi totalmente diferente. Os chamados esportes radicais precisam ficar cada vez mais radicais para continuar interessantes.

Quando se aproximou da meia-idade e ficou famoso, Dean Potter mergulhou cada vez mais fundo nas artes perigosas.

Ele começou sua trajetória pela escalada, vivendo em uma van ao lado do rio e se esquivando dos guardas florestais de Yosemite. Sua habilidade era fora do comum. Ele quebrou recordes de velocidade na escalada solo e em estilo livre —um Homem Aranha sem as membranas.

Então Potter começou a percorrer cordas esticadas sobre abismos profundos. Atraiu patrocinadores. Começou a voar com wingsuit, modalidade em que um único erro de cálculo significa a morte. Seu salto do monte Eiger, partindo de um penhasco situado acima das nuvens, marcou o recorde de o mais longo voo de wingsuit, com quase três minutos.

Não há dúvida de que o que ele fazia envolvia um pouco do éthos dos dublês em filmes de ação. Mas, para Potter, também era algo espiritual. Em seu site, ele falava em “se atirar no vazio” e superar o medo que mantém a maioria de nós presa à terra: “Quando me solto, todo um novo mundo se abre”.

No fundo, porém, ele sabia que a aposta com sua própria vida não poderia continuar.

“Para mim, praticar base jumping com wingsuit parece seguro, mas 25 pessoas que praticam a modalidade morreram só neste ano”, escreveu em seu blog no ano passado, após a morte de um amigo. “Deve haver alguma falha em nosso sistema, um segredo letal que foge de minha compreensão.”

Não, a falha não estava no sistema, mas no fato de nossa cultura louvar o suicídio assistido pelo esporte. Amo o espírito de Dean Potter, mas não aprecio suas ações. O tipo de salto de penhascos que ele praticava é considerado o esporte de mais alto risco do mundo. Mas descrever isso como esporte é ser leniente demais. Isso é cortejar a morte. E as chances estão do lado da morte.

Dean Potter pensava que estava voando. Mas estava apenas caindo. E no dia 16 de maio ele caiu para a morte. Seu ato final foi uma história cautelar tão antiga quanto aquela que os gregos da Antiguidade contavam sobre Ícaro.

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