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As cidades mais pobres dos EUA geralmente dependem da renda gerada pelas multas de trânsito, quase sempre impostas às minorias. Protesto no Missouri | Whitney Curtis /The New York Times
As cidades mais pobres dos EUA geralmente dependem da renda gerada pelas multas de trânsito, quase sempre impostas às minorias. Protesto no Missouri| Foto: Whitney Curtis /The New York Times

Se os tiros que acertaram um adolescente negro desarmado, em agosto passado, resultando em semanas de comoção, tivesse acontecido a cerca de 400 metros a sudeste, ele não teria morrido em Ferguson, no Missouri, mas no vilarejo vizinho, em Jennings.

Segundo denúncia recente, é rotina o sistema judiciário dali, regido por um magistrado branco, mandar gente (leia-se negros) para a cadeia até por falta de pagamento de multas mínimas.

Se a morte de Michael Brown, de 18 anos, tivesse ocorrido a 5 km ao norte, a atenção teria se voltado para Florissant, onde, em 2013, a polícia parou motoristas negros quase três vezes mais que a fatia da população que eles representam.

A menos de 7 km a noroeste, em Calverton Park, as multas e custas processuais respondem por mais de 40 por cento da receita municipal do ano passado.

Um relatório do Departamento de Justiça descreveu a atitude dos oficiais de Ferguson como racismo explícito, além do uso excessivo de força e de um sistema que parece encarar as pessoas “menos como cidadãos que devem ser protegidos e mais como réus em potencial, além de fontes de renda”. Ferguson, com 21 mil habitantes, é incomum em vários aspectos — expediu mais mandados do que qualquer cidade de seu tamanho no estado, por exemplo — mas a injustiça de seu sistema judiciário, enfatizada pelo documento, não se limita a ele, nem ao Condado de St. Louis e nem mesmo ao Missouri.

Vanita Gupta, chefe do setor de Direitos Civis do Departamento de Justiça, pediu à polícia e às autoridades regionais que lessem o relatório sobre Ferguson e fizessem uma análise cuidadosa para saber se suas polícias e sistemas judiciários também necessitavam de uma reforma. “O estudo realmente enfatiza algumas das questões que flagelam muitas jurisdições por todo o país”, admite ela.

Investigações e processos instaurados nos EUA concentraram a atenção no ônus que o sistema judiciário impinge sobre os pobres.

No Alabama, estado que tenta compensar os cortes no orçamento judiciário impondo taxas – como os US$35 sobre o pagamento de fiança – vários processos alegam que os tribunais locais perpetuam o ciclo de multas pesadas para infrações irrisórias e cadeia para quem não tiver condições de pagá-las. Já em 2009, a Flórida se tornou modelo de recolhimento “agressivo” de taxas jurídicas e multas.

Antonio Morgan, dono de uma mecânica de 29 anos, passou vários meses preso em diversas delegacias do Condado de St. Louis, desembolsou milhares de dólares e chegou a tomar eletrochoques por causa de infrações de trânsito. “O pessoal está ficando doido porque todo mundo só pensa em Ferguson, Ferguson, Ferguson. A polícia manda muitos negros pararem, sim, mas eles não são os piores, tem coisa bem ruim por aí”, diz ele.

Os policiais das cidades vizinhas rejeitam qualquer comparação com Ferguson. “Você não desmonta a casa inteira para matar um inseto”, disse o prefeito Patrick Green de Normandy, que é negro. Ele disse que sua força policial passou a emitir mais convocações desde que as agências estaduais pediram ajuda no patrulhamento da Interestadual 70 e que o dinheiro vinha sendo usado na segurança pública. “Todo mundo está dizendo que a cidade está tirando vantagem dos pobres, mas desde quando eles têm direito de cometer crimes?”

James A. Paunovich, presidente do comitê de conselheiros de Calverton Park, afirma que cidades do tamanho da sua, com comércio pequeno ou inexistente, não têm como arrecadar.

“Elas têm que encontrar um gerador de renda à prova de recessão. Por mais pobres que as pessoas sejam e por mais dificuldades que passem, é perfeitamente possível multá-las”, explica Shanna Pearson-Merkowitz, professora de Ciências Políticas da Universidade de Rhode Island.

O governador do Missouri, o democrata Jay Nixon, defende um teto para a porcentagem da renda que as cidades podem arrecadar com multas de trânsito e taxas judiciais, além de alternativas à prisão para aqueles que não tiverem condições de pagarem as penalidades.

Para o prefeito Green, o limite atingiria mais praticamente só as cidades de maioria negra.

Qiana Williams, uma negra de 36 anos, mãe de uma menina de nove, conta que já foi presa várias vezes por infrações de trânsito – uma delas quando ligou para a polícia para pedir ajuda depois que um ex-namorado a tinha machucado. Nada disso ocorreu em Ferguson e garante que as piores experiências que enfrentou foram em um condado totalmente diferente.

“St. Louis sabe que o problema não é de Ferguson, mas não sei se o resto do país também sabe”, conclui ela.

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