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| Foto: fotografias de LYNSEY ADDARIO para THE NEW YORK TIMES
  • A Unicef estima que 9 mil crianças do Sudão do Sul foram recrutadas para lutar; à esq., jovem soldado rebelde

Deitado no chão de um hospital improvisado nos arredores da cidade, um soldado com a perna engessada brincava com outros combatentes feridos. Seu sorriso era largo e ingênuo. Sua voz ainda não tinha os falsetes típicos da puberdade.

"Tenho 17 anos", disse o soldado, Lat Magai.

Talvez ele não tenha mentido, mas isso é improvável. O mesmo se aplica a outros quatro jovens que estavam ali, assim como a um comboio do lado de fora, onde soldados com uniformes grandes demais se esquivavam das perguntas feitas por estranhos. Eles sabem que não deveriam estar ali, pois são jovens demais para atuar como soldados.

Mais de seis meses de combates no Sudão do Sul dão continuidade à recente história sangrenta do país. Milhares morreram e mais de 1 milhão de pessoas foram deslocadas. A fome é uma ameaça constante, o cólera irrompeu em alguns lugares e a violência sexual aumenta. A ONU e outros observadores afirmam que outro fantasma de guerras passadas está de volta: o recrutamento de crianças como soldados.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estimou, no mês passado, que 9 mil crianças foram recrutadas pelas Forças Armadas ou por outros grupos para lutar no conflito no Sudão do Sul. Embora esse número não tenha sido confirmado, o Departamento de Estado americano citou neste ano "relatos de recrutamento forçado por tropas do governo, e o uso de crianças-soldado tanto por forças do governo quanto dos rebeldes".

Defensores dos direitos das crianças dizem que a prática é disseminada e que crianças-soldado foram vistas em escaramuças, incluindo no ataque à base da ONU.

O conflito começou em dezembro, quando divergências eclodiram entre soldados leais ao presidente Salva Kiir e outros fiéis a seu ex-vice-presidente, Riek Machar. Isso logo ganhou uma dimensão étnica, criando um racha entre os dois maiores grupos do país, os dinka e os nuer. Kiir é da etnia dinka e Machar é nuer.

O recrutamento ou uso de crianças como soldados é apenas uma violação entre as seis estabelecidas para indicar que há crianças em perigo em um conflito armado. Segundo grupos de direitos humanos, a maioria dessas violações —como mutilação, assassinato em massa, violência sexual e sequestro— está ocorrendo no Sudão do Sul.

O recrutamento de crianças, dizem especialistas, é feito principalmente nas áreas mais afetadas pelo conflito: os Estados do Nilo Superior, Jonglei e Unidade. Às vezes, o recrutamento é feito por líderes tribais que invocam a defesa de sua identidade étnica e o direito à vingança.

Observadores dizem que o ataque à base da ONU em abril envolveu jovens dinkas e que jovens nuers participam da milícia tribal conhecida como Exército Branco, que tem envolvimento com os rebeldes.

Fatuma Ibrahim, da Unicef, que trabalha há anos com proteção à infância em Serra Leoa, Libéria, El Salvador e agora no Sudão do Sul, declarou: "A participação de crianças no Exército e em grupos armados sempre foi um problema no Sudão do Sul".

Antes do Sudão do Sul se tornar independente do norte, em 2011, ela trabalhou com o Exército de Libertação do Povo Sudanês, então um grupo rebelde e hoje o Exército nacional do Sudão do Sul, para libertar soldados menores de idade.

Mas, na opinião de agentes que atuam com a proteção dos direitos da criança, não se observa progresso algum desde que o conflito começou, no ano passado.

"Aliás, a situação atual parece até pior", disse Ibrahim. O governo do Sudão do Sul e os rebeldes negam recrutar soldados menores de idade.

Abraham Kur Achiek fez parte desses contingentes e sabe o mal causado por essa experiência. Hoje ele é funcionário da Unicef. "No final das contas, caso não morram, essas crianças ficam com a alma e o coração partidos", comentou ele.

Nascido em Bor, Achiek tinha quase dez anos quando o Exército de Libertação do Povo Sudanês, então fora da lei, pegou em armas contra o norte nos anos 1980 e o levou embora. "Os chefes recebiam a ordem de pegar todos os meninos a partir de nove anos de idade", relatou ele. Essa foi a última vez que ele viu seus pais. Junto com milhares de meninos de todo o Sudão do Sul, ele saiu de Bor e caminhou durante semanas para o leste, rumo à fronteira com a Etiópia.

"Muitos morreram no caminho", disse ele.

Em campos de refugiados na Etiópia, eles eram recrutados à força, instruídos sobre o conflito e treinados para usar metralhadoras. Ele se lembra da primeira vez em que atirou, durante uma batalha. "No primeiro minuto, você fica apavorado. É terrível", disse. "No minuto seguinte, você só pensa em sobreviver."

Ele conseguiu fugir e andou com outros meninos por centenas de quilômetros até um campo de refugiados no Quênia, onde foram apelidados de "garotos perdidos".

Hoje com quase 40 anos e pai de quatro meninas e dois meninos, ele tenta poupá-los de sua experiência passada.

Ele afirmou ter esperança de que um dia a paz reine no Sudão do Sul, porém lamenta o que está vendo na atualidade.

"Eu achava que crianças sofrendo nas mãos de Exércitos fosse um episódio que havia se encerrado conosco", disse com preocupação.

Ativistas temem nova geração de "garotos perdidos"

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