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Para a criação da ‘221’, centenas de pastores foram expulsos e, em última hipótese, mortos pelas autoridades | LAM YIK FEI/NYT
Para a criação da ‘221’, centenas de pastores foram expulsos e, em última hipótese, mortos pelas autoridades| Foto: LAM YIK FEI/NYT

Entre os rebanhos de iaques e as bandeiras de oração do budismo tibetano que pontuam um planalto ventoso no noroeste da China, ficam as ruínas de uma cidade isolada e oculta que desapareceu do mapa em 1958.  

Oficinas, bunkers e dormitórios abandonados são os restos da Fábrica 221, também conhecida como a Los Alamos chinesa. Aqui, em uma área no alto da montanha chamada Jinyintan, na província de Qinghai, milhares de pastores tibetanos e mongóis foram expulsos para a criação de uma cidade secreta, onde um arsenal nuclear foi construído para defender a revolução de Mao Zedong. 

"Era totalmente secreta; você precisava de autorização para entrar. Não podíamos falar sobre ela de jeito nenhum", disse Pengcuo Zhuoma, de 56 anos, pastor de etnia mongol que vive ao lado de uma oficina nuclear abandonada, cuja família fornecia carne e leite para os cientistas.  

Isso mudou na década de 1990, quando a "Cidade Atômica", como é chamada agora, se tornou um exemplo de patriotismo, celebrando cientistas e operários que trabalharam em condições difíceis no planalto mais de três mil metros acima do nível do mar. Eles construíram a primeira bomba atômica chinesa, em 1964, então sua primeira bomba de hidrogênio, que foi testada em 1967, e ajudaram a desenvolver mísseis para transportar as ogivas.  

Todos que estavam ao redor, fossem humanos ou animais, acabaram sendo afastados para a criação do arsenalLAM YIK FEI/NYT

Hoje, veteranos do projeto falam com orgulho de como ajudaram a forjar o escudo nuclear da China. Um museu, ainda proibido aos estrangeiros, mostra aos visitantes que as armas foram feitas para se defender de agressores americanos e soviéticos em torno do país. Uma estátua de Mao vigia constantemente a praça central da principal cidade, onde milhares de pessoas ainda vivem.  

"Na época, as condições sociais e a posição internacional da China eram um pouco como as da Coreia do Norte hoje. Para muitas pessoas, o espírito era: -Vou fazer tudo o que o presidente Mao mandar-", disse Liao Tianli, escritor que visita Jinyintan uma ou duas vezes por ano e já entrevistou cientistas que trabalharam no projeto.  

Porém, enquanto agora eles são reconhecidos por seu trabalho, e alguns dos segredos da Fábrica 221 estão sendo revelados, outros aspectos de seu passado permanecem ocultos pela censura e pelo silêncio oficial. Construir armas nucleares aqui teve um preço alto, e alguns sobreviventes e pesquisadores tentaram desvendar fatos históricos não mencionados em memoriais e exposições. 

Os pastores e agricultores que foram expulsos por causa do projeto passaram fome, foram executados ou expulsos brutalmente. A paranoia política envolveu a própria iniciativa, e milhares de cientistas e técnicos foram perseguidos. Alguns veteranos disseram que os trabalhadores não eram adequadamente protegidos contra a radiação, nem recebiam atendimento eficaz quando desenvolviam algum câncer. 

Pastores que se revoltaram contra o confisco da terra e do gado foram presos, torturados e, em última hipótese, mortos pelas autoridadesLAM YIK FEI/NYT

"Se ninguém tivesse se manifestado, esse episódio da história ainda estaria enterrado", disse Wei Shijie, 76 anos, físico aposentado que trabalhou em uma oficina de detonação e explosivos na Fábrica 221 durante a década de 1960. Ele escreveu um livro de memórias levemente ficcional descrevendo a perseguição dos trabalhadores de lá, e pede melhor assistência médica para os aposentados do projeto.  

"Por trás da glória de construção das duas bombas e do lançamento de um satélite, há muita gente que fez sacrifícios agonizantes, e grande parte deles foi desnecessária", disse Wei.  

A beleza da Jinyintan é celebrada na música e em um filme de 1953. Nos meses mais quentes, as pastagens explodem em um verde luxuriante onde pastores tibetanos e mongóis conduziram iaques e cabras durante séculos.  

Mas a partir de 1958, ela desapareceu dos mapas chineses. Cientistas e seus conselheiros soviéticos, que ajudaram a China com seu programa atômico até o amargo rompimento entre as duas potências comunistas, em 1959, escolheram o local, e milhares de tibetanos e mongóis que viviam ali foram os primeiros sacrificados pelo projeto.  

Hoje, poucos pastores ainda optam por viver ao lado do arsenal abandonadoLAM YIK FEI/NYT

O museu da Fábrica 221 diz que eles se mudaram voluntariamente, ajudados pelo governo e recompensados com milhares de ovelhas, mas as imagens bucólicas foram desmentidas por um policial que investigou os acontecimentos.  

Pastores de várias partes de Qinghai se revoltaram contra o confisco da terra e do gado, que faziam parte do assim chamado Grande Salto para Frente de Mao. As autoridades, preocupadas que a revolta pudesse ameaçar os planos nucleares, temiam espiões e sabotadores.  

"Foi necessário remanejar a Fábrica 221, mas os métodos usados em Jinyintan foram totalmente bárbaros", disse Shusheng Yin, o policial que investigou os despejos em Qinghai, em 1963. Yin, agora com 80 anos, disse que seu relatório foi ignorado, e descreveu a brutalidade que testemunhou em um texto de memórias publicado em 2012, em uma revista chinesa que mais tarde foi repreendida por autoridades do Partido Comunista.  

"Escrevi sobre isso para que fosse uma lição do passado, para que não cometamos os mesmos erros", disse Yin em uma entrevista.  

Ele contou que as autoridades prenderam cerca de 700 pastores em torno de Jinyintan, acusando-os de ingressar em grupos contrarrevolucionários. Dezessete morreram em interrogatórios brutais; quase nove mil foram expulsos, tendo apenas um ou dois dias para se preparar e podendo levar alguns poucos iaques por família. Centenas morreram na viagem, espancados e abusados por guardas, escreveu Yin.  

"As pessoas eram consideradas animais de carga. Não éramos vistos como seres humanos", disse um pastor sobrevivente a um pesquisador de etnia mongol que publicou seus relatos em uma pequena revista chinesa em 2007. 

Os milhares de cientistas, técnicos e soldados que vieram para o projeto 221 não sabiam muita coisa sobre o que havia ocorrido. No seu auge, a fábrica teve 18 oficinas, laboratórios e edifícios que se espalharam por 570 quilômetros quadrados; até 30 mil cientistas, trabalhadores e guardas viveram lá.  

Mas, embora a cidade secreta se preparasse para construir a bomba de hidrogênio, não estava imune às tempestades políticas que assolaram a China. Em 1966, Mao iniciou a Revolução Cultural para limpar e purificar seu movimento, e a área nuclear, então politicamente suspeita, pois contara com a ajuda dos odiados soviéticos, entrou em um período conturbado de expurgos, interrogatórios e disputas entre facções radicais rivais.  

Wei, o físico aposentado, disse ter visto um dos melhores cientistas da Fábrica 221, Qian Jin, ser espancado por interrogadores e morrer dias mais tarde. As autoridades detiveram e interrogaram quase quatro mil funcionários do projeto nuclear, e cerca de 50 foram executados, espancados até a morte ou se mataram por causa de duras acusações, de acordo com Wei.  

Esses eventos não são mencionados no museu e, segundo Wei, algumas antigas autoridades da fábrica pediram que não insistisse em falar dessas tragédias.  

Mas ele lhes diz que não há como fugir do passado.  

"Enfatizo que devemos refletir sobre isso. Ainda tenho pesadelos com a 221", afirmou.  

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