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Laboratório da Universidade de Toronto, onde, em 1921, o médico Frederick Banting e seu assistente Charles Best descobriram a insulina | Thomas Fisher Rare Book Library / University of Toronto
Laboratório da Universidade de Toronto, onde, em 1921, o médico Frederick Banting e seu assistente Charles Best descobriram a insulina| Foto: Thomas Fisher Rare Book Library / University of Toronto
  • Frederick Banting e Charles Best, os

Toronto, Canadá - Todos os meses um remédio milagroso é anunciado com estardalhaço, mas apenas uma ou duas vezes a cada geração surge uma droga verdadeiramente revolucionária. Esse é o caso dos medicamentos que viram sucesso imediato por serem capazes de praticamente levantar os mortos. Se a estreia de alguns desses produtos – como os remédios para o tratamento da aids – continua fresca na memória, o aparecimento do primeiro deles é pouco lembrado. Trata-se da insulina injetável, que, após muitas tentativas feitas por pesquisadores do mundo inteiro, foi isolada em 1921 por uma equipe de canadenses briguentos. Depois dessa descoberta, crianças voltavam a sorrir e a brincar, pais se emocionavam e médicos contavam casos que mais pareciam ressurreições bíblicas.

O milagre da insulina foi mais do que um avanço em testes sanguíneos. Como na visão do profeta Ezequiel sobre os ossos secos, o medicamento colocou carne em esqueletos vivos.

Nas primeiras décadas do século 20, meia dúzia de diferentes grupos de pesquisa estavam em busca da in­sulina – um hormônio produzido pelo pâncreas, mas difícil de ser separado das demais enzimas digestivas também fabricadas pelo órgão.

Sem insulina, o corpo não consegue consumir seu principal combustível, a glicose. A maioria das crianças diabéticas não produz insulina, en­­quanto os adultos portadores de diabete tipo 2 – frequentemente associado à obesidade – têm organismo resistente à ação do hormônio. Em ambos os casos, açúcar e amido são um veneno para o diabético, pois entopem a circulação sanguínea com uma quantidade de glicose que não será utilizada. Pacientes com deficiência de insulina sentem mais sede e fome, porém na medida em que comem mais também aumentam o desperdício de glicose.

Mesmo antes de a insulina estar disponível os médicos já haviam en­­tendido bem esse ciclo e elaboravam tratamentos paliativos. Os diabéticos tinham de seguir dietas com um nú­­mero de calorias mínimo – suficiente apenas para a sobrevivência – e ba­­seadas em saladas e ovos, além de totalmente desprovidas de açúcar e amido. Assim, os pacientes que já eram magros se tornavam esqueléticos. Por outro lado, o excesso de glicose desaparecia do sangue e da urina e a sobrevida dessas pessoas era mais longa.

Um grande especialista na terapia baseada em regimes alimentares foi o médico Frederick Allen (1890-1954), de Nova York, que fundou o primeiro hospital residencial para diabéticos. O célebre jurista e membro da Supre­­ma Corte norte-americana Charles Evans Hughes recorreu ao dr. Allen quando sua filha Elizabeth, então com 11 anos de idade, foi diagnosticada com a doença, em 1919.

Elizabeth Hughes era uma garota alegre, bonita, com um metro e meio de altura, cabelos castanhos e lisos e um grande interesse por pássaros. Com a dieta receitada por Allen, seu peso caiu para 30 quilos, depois para 24 quilos e, após uma diarreia que quase a matou na primavera de 1922, para 21 quilos. Até ali, ela já havia so­­brevivido por três anos, muito mais do que o esperado. Foi quando sua mãe ouviu a notícia: a insulina havia sido finalmente isolada no Canadá.

O herói improvável dessa história foi Frederick Banting (1891-1941), um garoto caipira e esquisito, graduado em Medicina sem muita distinção, ferido na Primeira Guerra Mun­­dial e que havia mais ou menos se forçado a entrar num laboratório da Universidade de Toronto com o objetivo de obter a tal substância intangível. Durante o verão absurdamente quente de 1921, Banting e seu assistente Charles Best realizaram experimentos em cães diabéticos. O sucesso fora apenas parcial até o cachorro de número 92, um collie dourado, que pulou da mesa e começou a abanar seu rabo logo após a injeção aplicada pelos pesquisadores. Enquanto isso, o diretor do laboratório e mentor de Banting, John J. R.Macleod (1876-1935), passava férias na Escócia.

Banting nunca perdoou Macleod, que, descansado e revigorado, retornou às atividades no outono seguinte e assumiu o controle da pesquisa. Es­­sa hostilidade amarga continuou a existir por anos a fio, inclusive depois da cerimônia de entrega do Nobel de 1923, à qual Banting se recusou a comparecer. Mesmo tendo aceitado compartilhar o prêmio de Medicina com Macleod, Banting não dividiria o pódio com seu ex-chefe.

Nessa época, mães do mundo in­­teiro enviavam cartas de partir o coração. "Querido dr. Banting, estou an­­siosa em saber mais sobre sua descoberta", escreveu uma delas, antes de descrever o caso de sua filha: "Ela está num estado lamentável, esgotada e reduzida". Quem assinava era a mãe de Elizabeth Hughes, Antoinette. Àquela altura, Charles Evans Hughes havia deixado temporariamente a Suprema Corte para assumir o cargo de secretário de Estado no governo do presidente Warren G. Harding. Ban­­ting não se deixou impressionar e respondeu que "não, me desculpe, não há insulina disponível". De fato, a equipe dele tinha dificuldades para fornecer o produto para mais do que alguns poucos pacientes.

Meses depois, o médico mudaria de ideia.

Forças superiores provavelmente intervieram em favor da me­­nina, ou talvez o próprio Hughes – um homem severo e sisudo, a quem Theodore Roosevelt havia apelidado de "iceberg barbudo" – tenha mexido os pauzinhos.

Assim, Elizabeth logo estaria a ca­­minho de Toronto para receber as injeções que salvariam sua vida. Era o fim de sua jornada, mas apenas o início da história para muitas outras crianças sem conexões importantes, que tiveram de aguardar. Durante um bom tempo, os cientistas canadenses brigaram intensamente sobre a maneira mais justa de distribuir as pequenas quantidades da substância. Banting ainda deixaria um de seus colegas com o olho roxo antes de as discussões terminarem.

No fim das contas, foi estabelecido o primeiro acordo entre acadêmicos, médicos autônomos e a indústria farmacêutica. Por meio dele, o laboratório Eli J. Lilly and Co., de Indianápolis, recebeu o direito de produzir insulina em larga escala.

Quando os primeiros coquetéis de remédios contra a aids começaram a salvar vidas de maneira aparentemente milagrosa, Kent Sepkowitz, especialista em doenças infecciosas do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center de Nova York, debruçou-se so­­bre a literatura que relatava como fo­­ram os primórdios da insulina injetável. O que ele descobriu nessa pesquisa foram semelhanças no desenvolvimento de ambos os medicamentos. "De certa forma, a descoberta em si é a parte fácil. Depois dela é que começa o trabalho de verdade", conta.

Tanto no caso da insulina como no surgimento dos medicamentos para o tratamento da aids, o grande desafio foi "conseguir levar os produtos daqui até lá", explica Sepkowitz. Os custos e a logística envolvidos na produção de insulina em larga escala eram inicialmente assustadores. Mas não demorou muito para que grandes car­­regamentos de carne congelada e pâncreas de porco começassem a sair dos gigantescos abatedouros de Chicago e chegar à fábrica da Lilly. Com isso, o preço do remédio cairia 90% até 1932.

A história da insulina está em exposição desde terça-feira na New York Historical Society.

A mostra é baseada no livro Breakthroug, de autoria de Thea Cooper e Arthur Ainsberg.

Tradução: João Paulo Pimentel

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