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O slogan da campanha ateísta britânica "Deus provavelmente não existe. Pare de se preocupar e vá curtir a vida" inicialmente me pareceu mera idiotice. Por que gastar quase R$ 500 mil em anúncios dentro de ônibus londrinos? A campanha fez uma mistura de suposições tão fracas – a crença em Deus como uma fonte de preocupações ou ainda uma negação do lazer – que não consegui descobrir até hoje quem ela queria convencer. Além disto, como o termo "provavelmente" irá convencer alguém a mudar de opinião?

Então refleti sobre como a campanha deve parecer para algumas das pessoas que fazem uso destes ônibus. Essas pessoas, na maioria operários, têm o cansaço estampado no rosto na volta de mais um dia de trabalho. Elas frequentemente carregam consigo uma bíblia já surrada ou um livro de orações que leem durante a jornada, agora adornada com esses anúncios. Um slogan empoado do tipo de ateísmo triunfal que só é possível àqueles que possuíram oportunidades educacionais, privilégios e segurança material da classe média britânica. A fé dessas pessoas mais simples é o que alimenta sua esperança e até mesmo nutre algo mais importante: seu senso de dignidade quando são confrontadas no dia-a-dia com anúncios de afluência que zombam delas e as classificam como "derrotadas", visto seu diminuto poder de compra. Tenho repulsa ao constatar como podemos ser tão cegos e auto-indulgentes a este mundinho elitista.

A ironia, por sua vez, reside no fato de que, encabeçado por Richard Dawkins, o trio de intelectuais responsável pelo lançamento do anúncio está em ritmo de festa para celebrar nesta semana a posse de um presidente cristão fervoroso, Barack Obama. O trio prefere ignorar deliberadamente o fato de que o futuro presidente dos EUA escolheu, mesmo apesar da criação agnóstica com pitadas de ateísmo de um pai distante, tornar-se cristão quando tinha aproximadamente 20 anos. "Senti o espírito de Deus me chamando e me entreguei à Sua vontade e assim pude me dedicar ao descobrimento de Sua verdade", escreve Obama em seu livro, A Audácia de Esperança.

A fé do presidente é inabalável e não pode ser vista como um oportunismo político. A conversão ocorreu muito antes de a carreira política entrar em seus planos. A mesma fé causou muita controvérsia durante a campanha eleitoral. Não faz muito tempo, aliados seculares liberais se escandalizaram com a decisão de Obama de não dissolver, mas sim de assumir e expandir, a controversa política de Bush de fundar organizações de origem religiosa para a prestação de serviços sociais. Para apimentar ainda mais a situação, ele escolheu o pregador evangélico Rick Warren (que se opõe ao casamento gay e ao aborto, mas é defensor ferrenho da justiça social e projetos sobre as mudanças climáticas) para realizar a oração na cerimônia de posse. Obama manteve-se firme na fé em Deus desde que se envolveu com as ajudas comunitárias em Chicago.

Obama descreveu os três anos que passou organizando comunidades como "a melhor educação que eu poderia ter". Michelle (Obama) declara que o marido "não é um político. Ele é um ativista comunitário que explora a viabilidade política para realizar mudanças".

Ninguém precisa ir à Chicago para tentar entender isto, em especial os britânicos. Em Whitechapel, ao sul de Londres, os cidadãos londrinos receberam o mesmo treinamento e princípios que Obama recebeu na juventude ao trabalhar com comunidades. Esses ideais têm origem na Chicago assolada pela depressão dos anos 30, quando Saul Alinsky descobriu uma maneira de organizar as comunidades mais pobres e marginalizadas para que pudessem ganhar poder para melhorar suas vidas. Alinsky passou os 40 anos que se seguiram construindo sua Fundação de Áreas Industriais e divulgando seus métodos em livros como Rules for Radicals (Regras para os Radicais) – Saul Alinsky foi o tema da tese de graduação de Hillary Clinton. Os pensamentos deste marxista influenciaram o movimento dos direitos civis e quase todo movimento progressivo subsequente, desde os feministas até os de proteção dos direitos gays.

Seu conceito de organização pode ser explicado de forma bem simples: o objetivo da organização é fazer que o mundo mude do que é para o que deveria ser. Seus métodos são inteiramente pragmáticos: achar um lugar para as pessoas se reunirem (igrejas, sindicatos, escolas, etc.), identificar os pontos que estas instituições possuem em comum, trabalhar estes pontos para conceber e promover campanhas locais plausíveis. Ao mesmo tempo, as comunidades devem desenvolver o relacionamento entre si (nada substituiu um encontro cara a cara) e aprender a escutar. O organizador contratado pela comunidade (como foi Obama), além de professor de ferramentas políticas, é um identificador talentoso de líderes naturais.

O que Alinsky identificou foi que nas comunidades carentes, as instituições mais fortes e com as raízes mais profundas são sempre as religiosas (baseadas em fé). Elas fornecem recursos vitais a essas comunidades, trazendo dignidade e um significado às vidas marcadas e castigadas pela pobreza. Se combinarmos duas ou mais dessas instituições, veremos que existe nessa ligação um poder transformador. A grande heroína do movimento dos direitos civis, Rosa Parks, encabeça uma lista sobre os ativistas sociais mais poderosos nos EUA que receberam o treinamento da Fundação de Áreas Industriais.

O que este tipo de organização comunitária pode fazer é concentrar o profundo sentimento de justiça social presente em todas as tradições religiosas. Essas organizações conseguem reunir muçulmanos, cristãos e judeus em lugares onde a pobreza e a criminalidade frequentemente os separam.

Os seculares liberais que acharam que veriam o fim das orações na Casa Branca terão de rever seus conceitos. Eles podem deliberadamente ignorar a fé de Obama, mas devem lembrar que ele será um osso duro de roer. Doa a quem doer, o futuro presidente acredita piamente que a religião pode e deve ser utilizada para se obter progresso. A elite secular liberal nos dois lados do Atlântico terá de lidar com uma forma de crença religiosa muito mais desafiadora do que está acostumada a ridicularizar, entre elas a de Bush e seus comparasas.

* Esse artigo foi publicado na íntegra no jornal The Guardian

Tradução: Thiago Ferreira.

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