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O lago Nicarágua garante irrigação e água potável para a região que o cerca. Mas os planos para a abertura de um canal incluem os direitos de construção de centros industriais, oleodutos e um sistema ferroviário | Meridith Kohut/The New York Times
O lago Nicarágua garante irrigação e água potável para a região que o cerca. Mas os planos para a abertura de um canal incluem os direitos de construção de centros industriais, oleodutos e um sistema ferroviário| Foto: Meridith Kohut/The New York Times

A balsa “Che Guevara” atravessava o lago Nicarágua em direção à ilha de Ometepe, e era difícil saber para onde olhar primeiro.

Em uma extremidade da ilha fica o monte Concepción, estratovulcão ativo cujas erupções frequentes geram nuvens de cinzas que, dependendo das condições do vento, podem se assemelhar aos resíduos de uma chaminé gigantesca.

Na outra ponta se vê o vulcão Maderas, “primo” menor e mais verdejante do Concepción.

Quando você desembarca da balsa, as vistas passam de deslumbrantes a fascinantes.

A paisagem no sopé dos vulcões é coberta de bosques de bougainvíllea, bico-de-papagaio, hibisco, palmeiras e bananeiras.

Os vulcões dominam a ilha de 260 quilômetros quadrados, que recebe 1 milhão de turistas por ano, como jovens europeus que passeiam em ciclomotores.

Os ilhéus —30 mil moradores— trabalham em sua maioria no campo, andando a cavalo e cuidando de rebanhos de cabras.

Ometepe fica no meio do maior lago de água doce da América Central. A beleza da ilha e as águas imensas do lago Nicarágua são duas constantes imutáveis.

Mas tudo isso vai mudar se o bilionário chinês Wang Jing conseguir seu intento. No ano passado, um consórcio de empresas sob seu comando ganhou a aprovação do governo nicaraguense para construir um canal que vai atravessar o país.

O plano, que prevê a construção de uma ligação entre os oceanos Atlântico e Pacífico, reduzindo em 800 quilômetros a rota marítima entre Nova York e Los Angeles, é a realização de um sonho secular que antecede a construção do Canal do Panamá, que fica 725 quilômetros ao sul da trajetória proposta.

As estradas de acesso ao canal, orçado em US$ 50 bilhões, começaram a ser construídas no final de dezembro. A construção suscitou protestos, e o futuro do projeto ainda está em dúvida, entre outras razões, devido ao lago Nicarágua.

Se o canal for concluído, um trecho de 88 quilômetros vai atravessar o lago Nicarágua, transformando seu leito e os rios locais.

A principal fonte de água doce do país pode deixar de fornecer água potável.

O governo nicaraguense ainda não encomendou uma avaliação do impacto ambiental dos planos de construção do canal. A empresa por trás do projeto, HK Nicaragua Canal Development Investment Company, ou HKND, pagou uma empresa privada britânica, a ERM, para fazer o estudo.

Manuel Coronel Kautz, presidente do órgão nicaraguense responsável pelo canal, disse que as autoridades nacionais confiam que os relatórios ambientais já foram redigidos. Ele me disse: “O governo nicaraguense não tem preocupações com o projeto”.

Com isso em mente, eu quis fazer minha própria avaliação das perdas que a construção do canal pode significar para o turismo.

Como a maioria dos turistas, conheci o lago Nicarágua quando fui à cidade de Granada, em sua margem noroeste. Após uma viagem cansativa de Manágua em um ônibus cheio de passageiros e caixotes de galos que cantavam a toda hora, caminhei até a margem do lago, onde ondas pequenas lambiam o cais de madeira, e então prossegui até o ermo parque Centro Turístico, de frente para o lago.

Ali fui apresentada a Lorenzo, jovem morador de Las Isletas, arquipélago de mais de 300 ilhotas tropicais que se espalham pela extremidade noroeste do lago.

Construção de canal colocará em risco as águas do lago Nicarágua; acima, turistas fazem trilha na região
Meridith Kohut
The New York Times

Atravessamos de caiaque as águas revoltas do lago até chegar aos canais e lagoas mais tranquilos de Las Isletas. Lorenzo me mostrou os martins-pescadores e pássaros canoros que mergulhavam na água, andorinhas pousadas sobre nenúfares e garças que atravessavam pântanos. Ele se emocionou diante dos japus de peito amarelo, com seus ninhos em forma de bola dependurados das árvores. Em outra árvore, uma iguana nos olhava fixamente, quase oculta nas folhagens.

“Se o canal for construído”, disse Lorenzo, “o nível da água vai subir muito e depois descer. De um jeito ou de outro, não sabemos se vamos poder continuar a pescar aqui, como pescamos hoje.”

O governo afirma que o canal trará um incentivo econômico que é muito necessário ao país, onde muitas pessoas ganham apenas US$ 1 por dia. De acordo com a HKND, o canal dará emprego a 25 mil nicaraguenses. O governo projeta que a receita decorrente do canal possa tirar 400 mil pessoas da pobreza.

Mas o custo disso será uma “devastação ambiental avassaladora”, segundo Axel Meyer, professor de zoologia e biologia da Universidade de Konstanz, na Alemanha, que há 30 anos faz pesquisas na Nicarágua.

Em comentário escrito no ano passado para a revista “Nature”, ele e um colega observaram que os planos para o canal incluem o direito de construção e operação de centros industriais, aeroportos, oleodutos e um sistema ferroviário.

Um dos habitats que tem muito a perder é o de Ometepe, que depende do lago para a irrigação.

Segundo Meyer, a ilha tem flora e fauna singulares, que incluem uma salamandra sem pulmões e o Tomocichla tuba, peixe ciclídeo relativamente raro.

Em Ometepe, meu guia foi Enoc, que me levou primeiramente ao cafezal da Finca Madalena, conduzindo-me então para um passeio entre os cafeeiros que cobrem as encostas superiores do vulcão Maderas. Quando descemos a trilha, no retorno, ouvi gritos. “São macacos”, disse Enoc. “Mas se você quiser vê-los, vamos ter que sair da trilha.”

Eu o segui no meio do mato, passando por baixo de cercas de arame farpado, até chegarmos a um bosque onde Enoc apontou para o alto, para uma família de macacos-prego dependurados dos galhos mais altos.

Mais tarde, o guia me levou de carro até a Reserva Chaco Verde, onde seguimos uma trilha mais curta em volta da lagoa e observamos borboletas. Sentados mais tarde para almoçar à beira da lagoa, Enoc me contou que está construindo barracos na floresta, nas proximidades, com a esperança de alugá-los a turistas.

A perspectiva de que seja construído o canal em Nicarágua é a melhor razão para visitar o país agora, acrescentando dramaticidade a algo que, se não fosse por isso, poderia ser apenas um bonito cartão postal dos trópicos.

Penso nisso quando recordo o almoço com Enoc em Ometepe, em que ele apontou para o lago, para a ilha de Quiste e, mais ao longe, para duas balsas que faziam o trajeto entre a ilha e o continente. Eu me demorei olhando para a vista, que lembrava algo saído de um sonho, notando especialmente as águas tranquilas que se estendiam até o horizonte.

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