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Mutilação de afegã expõe dilema

A semana passada viu o desfecho bem-sucedido de um périplo em busca da garantia dos direitos da mulher no Afeganistão. Bibi (se­­nhorita) Aisha, de 18 anos, teve o nariz e as orelhas arrancadas pelo marido, com apoio da milícia Ta­­leban, após fugir de uma situação de escravidão.

Ela e a irmã foram entregues à família de uma pessoa que o tio delas matara – mais uma tradição que perpetua abusos. San­­grando após a mutilação, ela conseguiu chegar a um abrigo onde uma organização conseguiu um doador para a cirurgia de re­­cons­­trução, para a qual ela chegou aos EUA na última quinta-feira. A foto de Aisha estampou a última edição da revista Time, com a chamada "O que acontecerá se deixarmos o Afeganistão". Quando as forças da Otan invadiram o país e tiraram o Taleban do governo, em 2001, as mulheres estavam aprisionadas em casa e sujeitas a todo tipo de castigos. Ain­­da hoje, 85% são analfabetas.

É grande o dilema, porque o caminho mais fácil para encerrar a "guerra sem fim" seria um acordo com o Ta­­leban". "Seria muito provável que o Taleban voltasse ao poder, e pode-se esperar uma situação catastrófica contra mulheres e outros indivíduos", disse à Gazeta do Povo o consultor da Trilogy Advisors John Sitilides.

      A determinação do Irã de matar por apedrejamento Sakineh Ash­­tiani, acusada de adultério, mostra o quanto o abuso está ligado a políticas de Estado. Ao lado de tradições que perpetuam tais práticas, as leis discriminatórias e a omissão de governos são hoje os maiores inimigos de mulheres aprisionadas, abusadas, mutiladas e mortas.

      "O Irã insiste em executar Sakineh porque quer usar o caso como instrumento para aterrorizar e espalhar o medo entre seu próprio povo, perpetuar o poder deste governo e enfatizar que a posição feminina é inferior", disse à Gazeta do Povo a iraniana exilada na Alemanha Mina Ahadi, coordenadora do Comitê Inter­­nacional Contra Apedrejamentos (Icas, na sigla em inglês).

      Sakineh, presa desde 2006, foi liberada de acusações de planejar o assassinato do marido há quatro anos, crime pelo qual um homem já está preso. Porém, após a reação internacional à sua condenação por adultério, o Irã retomou a ação envolvendo a morte do marido dela. "O problema é que o sistema judiciário do Irã não é independente", diz o iraniano Meir Javedanfar, analista de Oriente Médio.

      Mesmo em países onde existem leis contra abusos a mulheres, determinadas políticas de governo po­­dem prejudicá-las. O governo Lula, pressionado em 2006 a aumentar a pena para a violência doméstica por recomendação da Comissão Intera­­mericana de Direitos Humanos, agora oferece asilo a Sakineh, o que mostra evidência de interesse político: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu de ombros ao caso num dia, defendendo que, se um país alterar suas leis ao gosto das pressões, vira "avacalhação".

      Três dias depois, afirmou que receberia "essa mulher, se ela está causando incômodo no Irã". A proximidade dos dois governantes pode até resultar na salvação de Sakineh, mas é temerário que seu destino seja manipulado politicamente pela busca brasileira por uma imagem de liderança em política externa.

      Em outros casos, o abuso contra mulheres é consentido pelo Estado via omissão. É o que ocorre com vítimas da mutilação genital, ainda praticada em mais da metade dos países africanos e outros do Oriente Médio e Ásia. A justificativa de que "tornará a mulher mais desejável para o marido" é tolerada por muitos fora desses países. "Nenhuma tradição que tolere o abuso de mulheres é aceitável", afirma Marianne Mollmann, diretora da Human Rights Watch (HRW).

      "Muitas vezes, o abuso de Estado tem relação direta com a falta de legislação que tipifique uma determinada conduta como crime", observa a advogada especialista em direitos humanos Chrystiane Paul. É o que a HRW tenta mudar no Curdistão iraquiano, que já baixou leis contra a violência doméstica. Agora, a ONG quer a proibição da mutilação feminina, após reunir declarações de líderes islâmicos de que a prática não está de acordo com o Alcorão.

      Costumes de um lugar podem ser incompreensíveis em outro, mas há limites para o que é aceitável. Soa estranho, por exemplo, que viúvas sejam consideradas fonte de azar no Nepal, problema que joga um grande número de mulheres na miséria.

      Na Índia, o problema do abuso contra mulheres está aliado à falta de segurança pública, e resulta em milhares que não ousam pôr o nariz para fora à noite. No Irã, a condenação por apedrejamento já fez ao menos 109 vítimas entre mulheres e homossexuais desde a revolução islâmica de 1979. Neste momento, 25 estão na berlinda. Outros países que praticam o apedrejamento são Arábia Saudita, Sudão, Paquistão, Afeganistão e Iraque.

      Melhorias

      A pressão contra costumes e políticas consideradas abusivas, apesar das resistênncias, tem resultado em melhorias na última década, especialmente no que diz respeito ao acesso à educação: "Mulheres e meninas estão mais educadas que há dez anos", diz Marianne, da HRW. O maior acesso a informações contribui para mostrar às mulheres que sofrem abuso que elas não estão condenadas a passar por isso.

      A HRW também aponta melhora nos direitos reprodutivos das latino-americanas, com mais acesso a informação e contraceptivos. "Sempre argumentamos que o que se passa dentro das casas também é questão de Estado e DH", informa Marianne.

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      Que medidas de Estado e da sociedade civil podem livrar mulheres de situações abusivas?

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