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A França realizou sua grande revolução em 1789 para derrubar o poder da monarquia e a autoridade do clero católico.

Na mitologia da República Francesa, a cidadania vem primeiro, e depois a religião.

É por isso que os franceses têm dificuldade para compreender a democracia americana: eles a consideram uma caricatura, o trabalho de religiosos que juraram sobre a Bíblia enquanto escravizavam e maltratavam a população afro-americana, até surgirem o presidente Abraham Lincoln e depois Martin Luther King Jr.

A França não gosta de teocracias, e as teocracias não gostam da França. Foi por isso, inspirada pelo espírito de Lafayette, o qual lutou com os americanos em sua revolução contra o Reino Unido, que a França muitas vezes intervém militarmente em países onde a liberdade é ameaçada por fanáticos religiosos.

Neste momento, a França tem tropas no Mali, no Iraque e na Síria. É um país onde, ao longo de um único dia, você pode frequentar uma missa católica, almoçar gefilte fish com um amigo judeu e à noite jantar um saboroso cuscuz marroquino. Nosso relacionamento com outras religiões é quase gastronômico, assim como podemos saborear vinhos da Alsácia, da Borgonha e de Bordeaux.

Obviamente, tal pluralismo não é aprovado pelos fanáticos.

O ataque terrorista contra o "Charlie Hebdo" é um ataque contra Voltaire, que defendeu o direito democrático de ridicularizar e blasfemar contra interesses poderosos. Os jihadistas atacaram a Redação do jornal mais irreverente da França. É como se a máfia tivesse crivado de balas a Mesa-redonda de Algonquin nos anos 1930, matando as mentes mais cáusticas da América de uma vez. Entre elas, Dorothy Parker, Robert Benchley, Harpo Marx, Edna Ferber e Harold Ross, que fundou a revista "The New Yorker" e trabalhou como seu editor.

É isso que perdemos. Hoje os assassinatos parecem um cenário de videogame: imaginamos serial killers, vestidos de ninjas pelo Estado Islâmico, dirigidos no estilo Tarantino, atirando contra os irmãos franceses do "National Lampoon" e Michael Moore. Mas esses terroristas também atacaram um mercado kosher: claramente um ato de antissemitismo, mas também um ato violento contra a liberdade constitucional de praticar a diversidade de religiões.

Isso colocou esses islâmicos radicais na mesma liga dos nazistas, que queimaram livros antes de queimar judeus. Em nossas mentes, situa este janeiro sangrento no reino do 11 de Setembro.

Mas a complexidade da França representa um problema para esses assassinos. O país tem uma população de 66 milhões, dos quais 6 milhões são muçulmanos.

Quando você atira em um francês hoje, há uma probabilidade de quase 1 para 10 de que acertará um muçulmano. E foi exatamente o que aconteceu: entre as 17 baixas dos atentados, um revisor de textos se chamava Mustapha e um policial se chamava Ahmed. Se você assassina humoristas, policiais, judeus, muçulmanos, católicos e ateus, você está tentando matar a diversidade francesa. Com suas balas assassinas, os terroristas revelaram o retrato de uma nação.

Esta é provavelmente a chave para se compreender o enorme movimento de raiva e luto que levantou o país, que espontaneamente armou a maior manifestação de sua história, com quase 4 milhões de pessoas nas ruas. Ninguém quer que a França se transforme em uma miniatura do Oriente Médio, onde cristãos iraquianos, cidadãos israelenses e muçulmanos moderados são alvejados.

Os policiais, que normalmente não são os mais populares servidores públicos, foram aplaudidos pelos manifestantes.

As pessoas estavam lhes agradecendo por defender uma sociedade que permite que seus cidadãos falem mal deles.

Mas há algo mais profundo em jogo. Desde 1945, as democracias entraram em uma era pós-heroica. A morte é mantida à distância, e a economia fica em destaque.

No plano internacional, a França é avaliada sob critérios definidos por agências de classificação de crédito como Fitch ou Moody's. Não se fala mais em Voltaire, somente em "ativos".

Mas, de repente, os heróis retornaram à nossa sociedade pós-heroica: são chargistas libertários que lutam com um lápis e policiais que defendem a República de um ataque assassino.

Durante uma semana inteira, os canais de TV da França pararam de falar em parâmetros orçamentários, só falaram em parâmetros de coragem. Não mais evasão fiscal, apenas resistência. Em termos americanos: adeus Dow Jones, olá Patton. Em termos franceses: adeus Christine Lagarde e Thomas Piketty, olá Victor Hugo, Émile Zola, Jean Moulin, Albert Camus.

A barbárie, vestindo a face da morte, nos dá nobres motivos para agir com dignidade.

Quando todo mundo encontra em si mesmo a dignidade de resistir, o "não" à barbárie se transforma em um "sim" à honra de estar vivo.

Marc Lambron é escritor e membro da Academia Francesa

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