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Uma estátua de Francisco Félix de Souza em Ouidah, Benin. De Souza tem muitos decendentes na cidade, os quais são influentes em estabelecer como a era da escravidão é lembrada no país | Jane HahnThe Washington Post
Uma estátua de Francisco Félix de Souza em Ouidah, Benin. De Souza tem muitos decendentes na cidade, os quais são influentes em estabelecer como a era da escravidão é lembrada no país| Foto: Jane HahnThe Washington Post

A pouco mais de um quilômetro de onde um dia foi o maior porto de escravos do oeste da África, o ponto de partida de mais de um milhão de pessoas acorrentadas, está a estátua de Francisco Félix de Souza, o homem tido como o pai da cidade de Ouidah. 

Há um museu dedicado à sua família e uma praça com o seu nome. A cada poucas décadas, seus descendentes orgulhosamente oferecem seu apelido – “Chachá” – a outro De Souza que seja apontado como o novo patriarca do clã. 

Mas há uma parte do legado De Souza que é raramente tratada. Após chegar do Brasil, na época uma colônia portuguesa, ao final dos anos 1700, ele se tornou um dos maiores mercadores de escravos na história do comércio escravagista transatlântico. 

Em Benim, onde o governo planeja construir dois museus dedicados a tratar do comércio de escravos em colaboração com a Instituição Smithsonian, a escravidão é um assunto conflituoso. Ele é levantado em debates políticos, minimizado por descendentes de mercadores de escravos e lamentado por descendentes de escravos. 

Em um momento em que americanos estão novamente debatendo sobre como a escravidão e a Guerra de Secessão são memorializadas, o Benim e outros países do oeste da África estão lutando para solucionar os seus próprios legados de cumplicidade naquele tipo de comércio. O conflito sobre a escravidão em Benim é particularmente intenso. 

Por mais de 200 anos, poderosos reis daquele que é hoje o país de Benim capturavam e vendiam escravos para mercadores portugueses, franceses e britânicos. Os escravos eram em geral homens, mulheres e crianças de tribos rivais – amordaçados e jogados em barcos em direção ao Brasil, Haiti e Estados Unidos. 

O comércio de escravos parou em grande maioria no final do século XIX, mas Benim nunca confrontou completamente o que aconteceu. Os reinos que capturavam e vendiam escravos ainda existem hoje como redes tribais, assim como os grupos que eram atacados. Os descendentes de mercadores, como a família De Souza, permanecem como as pessoas mais influentes do país, com um grande nível de poder sobre como a história de Benim é representada. 

Ao construir novos museus, o país terá que decidir como contará a história de seu papel no comércio de escravos. Estariam eles prontos, por exemplo, para mostrar De Souza como o mercador de escravos que ele foi? 

“As tensões ainda estão lá”, disse Ana Lucia Araujo, professora da Universidade Howard que passou anos pesquisando sobre o papel de Benim no comércio de escravos. “No passado, o país teve dificuldade em contar a história das vítimas da escravidão. Ao invés de disso, muitas iniciativas comemoravam aqueles que escravizavam essas pessoas.” 

Diferente de outros países africanos, Benim reconheceu publicamente – em termos gerais – o seu papel no comércio de escravos. Em 1992, o país realizou uma conferência internacional patrocinada pela UNESCO, a agência cultural da ONU, que tratou de onde e como os escravos eram vendidos. Em 1999, o então presidente Mathieu Kérékou, visitou uma igreja em Baltimore, nos Estados Unidos, e ajoelhou-se durante o pedido de desculpa feito a afro-americanos pelo papel da África na escravidão. 

Mas o que Benim falhou em tratar foram as suas dolorosas divisões internas. O pedido de desculpas de Kérékou aos americanos significou muito pouco aos cidadãos do país que ainda viam monumentos a De Souza espalhados pela cidade. Até os guias turísticos de Ouidah estavam frustrados. 

“Essas pessoas não sabem a história. De Souza era a pior pessoa e ainda assim é tratado como um herói”, diz Remi Segonlou, que possui uma pequena empresa que mostra a cidade para visitantes.

Passado complexo

A memória da escravidão emerge aqui de maneiras diferentes. Na eleição presidencial de 2016, um candidato, Lionel Zinsou, apontou raivosamente em um debate televisionado que o seu oponente, Patrice Talon, que hoje é o presidente de Benim, era descendente de mercadores de escravos. Em vilarejos onde as pessoas eram sequestradas para o comércio de escravos, famílias ainda se perguntam, por reflexo, se o visitante é “um ser humano” ou um sequestrador escravagista quando ouvem uma batida na porta. 

“Nosso ódio contra as famílias que venderam nossos ancestrais não passará até o fim do mundo,” disse Placide Ogoutade, um empresário na cidade de Ketou, onde milhares de pessoas foram capturadas e vendidas durante os séculos XVIII e XIX. 

Quando os seus filhos eram mais novos, Ogoutade lhes disse que eles estavam proibidos de se casarem com qualquer um que fosse um descendente dos mercadores de escravos do país. 

Alguns dos principais pesquisadores de Benim estão batalhando contra a relutância do país em interrogar o seu passado complexo. 

“Este ainda é um país dividido entre as famílias dos escravizados e os comerciantes de escravos”, disse Olabiyi Babaloa Joseph Yai, professor de história e linguística que deu aula por anos na Universidade da Flórida e trabalhou para a UNESCO em Paris antes de retornar a Benim. “Mas a elite não quer falar sobre o que aconteceu aqui.” 

A Instituição Smithsonian assinou um memorando de entendimento para fornecer ajuda aos novos museus, embora os detalhes ainda tenham que ser definidos, disseram oficiais. O governo de Benim também apontou diversos pesquisadores, incluindo Yai, para assegurar a exatidão e credibilidade das exibições em um dos museus, na cidade de Allada, a cerca de 30 quilômetros de Ouidah. Mas mesmo Yai questiona a relutância das autoridades em tratar dos fatos. 

“Isso é sobre reconciliação ou é apenas para atrair turistas? Isso é algo que nós temos que ser vigilantes a respeito”, disse. 

Há muitas razões para a história da escravidão em Benin ter sido manuseada ou deturpada por tanto tempo. Primeiro, quando Benin era uma colônia francesa entre 1904 e 1958, os franceses não queria atrair atenção para o seu papel durante a escravidão. Depois, quando Benin se tornou independente, seus líderes foram em busca de um senso de identidade nacional, e até mesmo uma identidade Pan-Africana. 

Desde 1991, quando Benim entrou em transição de uma ditatura para uma democracia, a história da escravidão tem sido majoritariamente representada como uma forma de atrair turistas ocidentais. 

“As pessoas aqui estão tentando encontrar trabalho. Eles estão tentando comer. Eles ficam surpresos quando veem turistas que vêm procurando sua identidade”, disse José Pliya, conselheiro do presidente de turismo.

A família De Souza

Pliya está dirigindo o estabelecimento dos dois museus, um focando na história de Ouidah, a ser aberto no ano que vem e financiado principalmente pelo Banco Mundial, e o outro em Allada, que investigará mais amplamente o papel do país na escravidão e está agendado para abrir em 2020. Os dois locais têm uma estimativa de custarem 24 milhões de dólares no total. 

O governo também está planejando reconstruir os fortes onde os mercadores de escravos viviam em Ouidah e as celas onde eles mantinham os escravos. 

O governo reconhece que, se quiser atrair turistas, precisará abordar preocupações sobre se Benim não estaria encobrindo as ações dos arquitetos do comércio de escravos. Conselheiros do presidente disseram que ele planeja renomear a “Praça de Chachá” em Ouidah, local que teria sido um leilão a céu aberto de escravos. As autoridades ainda não decidiram um novo nome. 

“Esse é um assunto muito delicado”, disse Pliya. 

Muitos membros da família De Souza estão horrorizados com a ideia. 

“Ele foi um homem que ajudou a modernizar o nosso país”, disse Judicael de Souza, 43 anos, mencionando o papel de seu ancestral em expandir o comércio agrícola com a Europa. 

Um membro da família, Martine de Souza, que é guia turística, alertou os familiares por anos para reavaliarem sua história. “Está na hora de aceitarmos a realidade”, disse em entrevista. Mas a maioria dos parentes ainda é cautelosa. 

No final do ano passado, a família escolheu o seu novo patriarca, ou Chachá. Ele é um engenheiro civil chamado Moise de Souza, que vive em um edifício de apartamentos com uma foto no tamanho de um pôster de si mesmo na parede. Ele possui pele marrom clara, um ponto de orgulho para uma família que frequentemente se gaba de seus laços com colonialistas. 

Em entrevista, ele reconheceu o papel de seus ancestrais no comércio de escravos. 

“É algo que faz eu me sentir mal. Nós sabemos que é doloroso, e tudo o que eu posso fazer é pedir desculpas”, disse. 

Ainda assim, ele se preocupa que os membros de sua família ficariam furiosos caso ele partilhasse esse sentimento publicamente em Benim. Ele veementemente se opõe a qualquer menção a De Souza como um mercador de escravos no novo museu de Ouidah. 

“É a reputação de nossa família”, disse. “Nós não queremos ser conhecidos por algo sujo assim”. 

O rei de Abomei, Dédjalagni Agoli-Agbo, ao centro, e novo "Chachá", líder da família De Souza,  Moise de Souza, em Abomei, em janeiroJane HahnThe Washington Post

No meio de janeiro, ele e dezenas de outros descendentes de Souza fizeram a sua peregrinação anual à cidade de Abomei, a antiga capital do reino de Dahomé, um centro de poder regional em tempos pré-coloniais. Um rei dos tempos modernos de Dahomé, Dédjalagni Agoli-Agbo, ainda preside, mesmo que seu título seja atualmente apenas cerimonial. 

O encontro tinha um extraordinário contexto. O reino de Dahomé vendeu centenas de milhares de escravos a mercadores como Francisco de Souza. A cerimônia era para celebrar o relacionamento entre as duas famílias que originalmente foi forjado a partir do comércio de escravos. 

Naquela manhã úmida, De Souza saiu de uma SUV vestindo um xale dourado e um chapéu. Ele caminhou até a frente da pouco iluminada sala do encontro, suando com o calor. Um grupo de estudantes americanos de antropologia, quase todos eles brancos, foram permitidos a entrar para observar. 

Finalmente, o rei chegou, cercado por diversas esposas usando vestidos combinados de amarelo e laranja. Ele apertou a mão de Souza. Taças de champanhe foram servidas. 

“Essa cerimônia nos lembra da conexão entre Dahomé e De Souza”, disse o rei, enquanto uma equipe de filmagem de um canal de TV beninense gravava. 

“Eu desejo boa saúde, uma longa vida e paz para o rei”, respondeu De Souza. 

A escravidão nunca foi mencionada. 

“É uma memória que as duas famílias prefeririam esquecer”, disse o professor que acompanhava os alunos, Timothy Landry, da Trinity College em Connecticut. 

Quando o evento acabou, a família De Souza saiu em conjunto do local. 

Eles vestiam roupas de cores vivas feitas de tecidos tradicionais africanos. Em algumas das saias e xales, um rosto branco havia sido impresso, com suas sobrancelhas levantadas e seu bigode enrolado. 

Caso ele não pudesse ser identificado, o nome do homem estava escrito com letras grandes: “Francisco Félix de Souza”.

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