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Confronto entre manifestantes e a polícia de choque durante protestos contra políticas econômicas do governo do Chile, nos arredores do palácio La Moneda em Santiago, 29 de outubro de 2019
Confronto entre manifestantes e a polícia de choque durante protestos contra políticas econômicas do governo do Chile, nos arredores do palácio La Moneda em Santiago, 29 de outubro de 2019| Foto: Pedro Ugarte / AFP

Dezenas de chilenos ficaram parcialmente cegos por balas de borracha e bombas de gás disparadas por policiais e soldados contra multidões de manifestantes.

Mais de 140 pessoas sofreram ferimentos nos olhos desde que os protestos começaram em 18 de outubro na capital do Chile, dizem defensores dos direitos humanos. Pelo menos 26 perderam completamente a visão em um olho, de acordo com a unidade de oftalmologia do Hospital Salvador, em Santiago, e muitos outros ainda estão sendo tratados. O número ultrapassa em muito os ferimentos semelhantes nos recentes protestos em Hong Kong, Espanha, Líbano e França, e suscitou investigações do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e de grupos de defesa.

"Na segunda-feira passada, recebemos dez pessoas com ferimentos desse tipo em uma hora e depois elas continuaram a aparecer", disse Mauricio Lopez, médico da unidade. "Foi inacreditável. Nada parecido já aconteceu na história da medicina ocular no Chile".

Do topo à esquerda, em sentido horário: José Soto, Diego Villegas, Edgardo Navararro, Antonio Morales, Vika, e Benton Cannavaro
Do topo à esquerda, em sentido horário: José Soto, Diego Villegas, Edgardo Navararro, Antonio Morales, Vika, e Benton Cannavaro| Tamara Merino / Bloomberg

As manifestações motivadas por um aumento nas tarifas do metrô rapidamente se transformaram em enormes protestos para exigir mudanças nas áreas de saúde, educação, pensões e até na constituição. Surtos de violência, incêndios criminosos e saques levaram o presidente Sebastián Piñera a declarar estado de emergência e convocar o exército para as ruas. Até agora, pelo menos 19 pessoas foram mortas e mais de mil ficaram feridas. Alegações de tortura e violência sexual podem se tornar um obstáculo insuperável para Piñera, que deve mediar a paz com a oposição para que possa continuar seu programa de reformas pró-mercado.

A Anistia Internacional e a Human Rights Watch também estão examinando as ações das forças de segurança. "Alegações de violação de direitos humanos abriram a caixa de Pandora", disse Claudio Fuentes, cientista político e professor da Universidade Diego Portales, em Santiago.

Os protestos, em grande parte pacíficos, atraíram um milhão de pessoas para uma única marcha. Soldados e policiais têm se esforçado para contê-los e às vezes respondem às manifestações com violência.

Balas de borracha

Em 20 de outubro, José Soto gritava palavras de ordem contra o governo na avenida principal de Santiago quando policiais entraram em ação.

"Vi alguns policiais carregando suas armas", disse o eletricista de 23 anos na terça-feira. "De repente, senti um forte golpe no nariz. Foi muito rápido. Não conseguia ver nada com o olho direito e, quando o toquei, minha mão estava cheia de sangue."

Uma bala de borracha de 9 milímetros - um projétil padrão para as forças de choque do Chile - explodiu no seu globo ocular direito e depois atingiu o seu nariz. "Os médicos me disseram que eu poderia ter perdido os dois olhos se minha cabeça estivesse em uma posição diferente", disse Soto, que estava entre cerca de uma dúzia de pessoas esperando para serem atendidas no Hospital Salvador.

Na semana passada, os feridos estavam em corredores e até dentro de salas de espera, à espera de atendimento. Em certo momento, 15 ambulâncias esperavam do lado de fora do hospital para deixar as vítimas. Os médicos trabalhavam o dia todo.

Os protestos continuam e cerca de 12 pacientes chegam por dia, disse o oftalmologista Patricio Meza, vice-presidente da associação médica do Chile.

Balas de borracha como as que os cirurgiões têm extraído dos rostos e dos olhos dos pacientes não devem ser disparadas diretamente contra as pessoas, mas sim indiretamente a partir de dois a três metros do alvo, disse Charles "Sid" Heal, um comandante aposentado do Departamento do Xerife de Los Angeles que ensina técnicas de controle de tumultos em todo o mundo. Os projéteis servem para machucar sem penetrar na pele.

"Se você arranca o olho de alguém, isso excede em muito o que consideraríamos uma força razoável", disse Heal.

Piñera, um bilionário que os opositores dizem ter pouca empatia pelas classes média e pobre do Chile, elogiou as forças de segurança, mas disse que os ataques aos cidadãos são repugnantes.

"A violência nunca deve ser aceita em uma sociedade democrática", disse Piñera em discurso em 28 de outubro, ao anunciar mudanças em seu gabinete. "Precisamos modernizar e fortalecer nossas instituições democráticas e modernizar e fortalecer nossos sistemas de inteligência e segurança pública".

Ainda assim, os manifestantes voltaram às ruas e, na manhã seguinte ao seu discurso, pelo menos cinco pessoas com ferimentos graves nos olhos apareceram no hospital.

Entre eles estava Diego Villegas, de 22 anos. Em 19 de outubro, o estudante de engenharia protestava havia menos de cinco minutos em Puente Alto, um bairro da classe trabalhadora, quando uma bala de borracha com núcleo de chumbo atingiu um de seus olhos.

"Eu já passei por duas operações e os médicos ainda não conseguiram retirá-la, então estou aqui esperando para ver quando eles podem operar pela terceira vez", disse ele. A pálpebra estava costurada para evitar infecções.

O Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile - que tem observadores em hospitais e delegacias de polícia e em manifestações em todo o país andino - registrou 1.233 pessoas feridas em hospitais, 37 com ferimentos a bala. O grupo está trabalhando em 138 processos legais, apresentando acusações que incluem cinco homicídios cometidos por policiais ou soldados, 18 casos de violência sexual e 92 casos de tortura. Três observadores do próprio instituto ficaram feridos durante as manifestações.

Policiais feridos

Cerca de 800 policiais foram feridos durante os distúrbios, de acordo com um vídeo postado pela polícia no Twitter na terça-feira. Dos quase 700 policiais feridos durante a primeira semana de protestos, 55 sofreram ferimentos graves, informou a polícia no Twitter em 26 de outubro.

"Esta é uma situação sem precedentes", disse Yerko Ljubetic, membro do conselho do instituto de direitos humanos. "Nós registramos mais acusações de tortura em dez dias de protestos do que em todo o ano de 2018. E sabemos que nem todos os casos de tortura, especialmente quando há violência sexual envolvida, são reportados".

Uma vítima, um estudante de medicina, se apresentou para dizer que foi preso, levado a uma delegacia, espancado e abusado sexualmente. Tais relatos indignaram o público a ponto de os legisladores da oposição terem apresentado a primeira moção de impeachment do Chile contra Piñera. Embora a medida tenha poucas chances de progredir, ela redefiniu a discussão política.

"A acusação de impeachment poluirá o debate e impedirá que reformas econômicas ou sociais sejam aprovadas", disse o professor Fuentes.

Ponto de virada

Piñera, que inicialmente disse que os protestos significavam que o Chile estava "em guerra", depois pediu desculpas e anunciou um pacote de gastos de US$ 1,2 bilhão que inclui dinheiro para pensões e salário mínimo garantido.

Os dias de indignação do Chile parecem um ponto de virada que se compara ao plebiscito de 1988 que encerrou a ditadura do general Augusto Pinochet.

"Uma das grandes promessas da democracia é que as coisas que aconteceram durante a ditadura não voltariam a acontecer", disse Ljubetic. "Os jovens já se sentem desconectados do sistema porque acham que ele é desigual e corrupto. O que está acontecendo nesses dias contribuirá para esse sentimento e durará anos".

No Hospital Salvador, na terça-feira, um homem mais velho levantou-se para pedir uma salva de palmas aos jovens que perderam os olhos. Indiferentes ao barulho, enfermeiras e médicos corriam de um cômodo para outro tentando fazer uma triagem rápida.

"Os médicos me dizem que agora preciso me cuidar, porque a recuperação será lenta, mas ainda vou aos protestos quando me sinto forte", disse Soto. "Ainda tenho um olho, e pretendo continuar usando até que algo mude."

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