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A Colômbia está em guerra há 50 anos. Retirada do corpo de um soldado morto em dezembro | Christian Escobar Mora/European Pressphoto Agency
A Colômbia está em guerra há 50 anos. Retirada do corpo de um soldado morto em dezembro| Foto: Christian Escobar Mora/European Pressphoto Agency

Uma variação da cena aparece nos pesadelos que comecei a ter na infância. Guerrilheiros usando uniformes camuflados sujos e carregando fuzis se aproximam.

Seu olhar é de indiferença. Fico olhando as botas pretas enlameadas avançando em minha direção. Estou encurralado, sem saída.

Crescendo na Colômbia, eu me imaginava sendo sequestrado pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), um grupo guerrilheiro de inspiração marxista que combate o governo há mais de meio século.

Mas numa tarde eu me vi em um bar de hotel em Havana na companhia de dois membros das Farc. "Vocês por acaso são colombianos?", perguntei em tom pacífico, checando se eram os homens que tinham concordado em se encontrar comigo.

Quando eles confirmaram, me sentei à mesa e conversei com compatriotas que cresci temendo e odiando. Anos atrás, esses homens provavelmente me teriam visto como alguém que merecia ser sequestrado, alguém da classe de privilegiados que eles chamam de oligarcas.

Anos atrás, talvez me sentisse aliviado se visse imagens de seus corpos abandonados num campo de batalha. Mas esta é uma nova era para os colombianos. Assim, apertei as mãos deles e pedi uma rodada de cerveja.

Um pouco mais de dois anos atrás a primeira equipe das Farc saiu de seus esconderijos nas selvas e viajou a Havana para iniciar negociações de paz com o presidente Juan Manuel Santos. As negociações realizadas aqui vêm obrigando os colombianos a rever um passado doloroso.

Há razões para termos esperança: no final de 2014 as Farc declararam um cessar-fogo unilateral e por tempo indeterminado que parece estar sendo respeitado, em grande medida, e recentemente o governo afirmou sua disposição de buscar uma suspensão bilateral das hostilidades no menor prazo possível.

Com cerca de 7.000 integrantes, as Farc são de longe o maior grupo insurgente no conflito colombiano, alimentado há décadas pela desigualdade profundamente enraizada no país e no narcotráfico multibilionário.

Conseguir que o grupo se desfaça ajudará em muito a encerrar um ciclo de violência que já fez estimados 7 milhões de vítimas, incluindo pessoas mortas, sequestradas ou deslocadas pelos combates. Nos últimos 20 anos, segundo estimativas do governo, mais de 39 mil colombianos foram sequestrados.

Se for assinado um acordo de paz, Santos prometeu submetê-lo a referendo antes que ele entre em vigor. No primeiro encontro com os membros das Farc, falamos só de generalidades.

Eu tinha pedido para entrevistar Luciano Marín Arango, conhecido por seu codinome, Iván Márquez. Ele é o segundo em comando das Farc e o negociador-chefe da organização.

Me chamaram dois dias depois. Me deparei com dois líderes das Farc cujos rostos reconheci de cartazes de "procurados".

Jorge Torres, 61, conhecido como Pablo Catatumbo, e Felix Antonio Muñoz, 55, conhecido como Pastor Alape, estavam sentados sobre sofás macios, acompanhados de duas mulheres jovens.

Perguntei o que tinham ouvido de suas vítimas, muitas das quais foram convidadas a Havana para fazer seus relatos. Muñoz disse que o clima prevalente nas negociações de paz na capital cubana não é de recriminação. "Apesar do sofrimento, as vítimas não transmitiram ódio, mas um desejo de paz",disse.

Mas Muñoz se apressou a observar que as pessoas que viajaram a Havana para dar seus testemunhos incluem vítimas das forças governamentais e de paramilitares de direita, que cometeram alguns dos piores abusos no conflito. Ele me disse que muitos membros das Farc também sofreram muitíssimo.

As duas mulheres pareciam me observar com certo receio. Perguntei a uma delas, que atende pelo codinome de Camila Cienfuegos, 34, como acabou entrando para as Farc.

Ela me contou que quando era criança, sonhava ser jornalista. Mas, na adolescência, não viu perspectivas boas pela frente e encontrou camaradagem e proteção entre os guerrilheiros. "Você enxerga as diferenças que existem. Algumas pessoas podem estudar, outras, não."

Samy Flores, 27, disse que muitas vezes os colombianos são forçados a escolher de qual lado ficar. Ela o fez ainda na adolescência. "Você só vê guerra e sofrimento em volta. Se continuar a ser civil, ficará exposta."

Eu cresci numa casa com duas empregadas e estudei num colégio particular americano. Muitos colegas eram levados às aulas em carros blindados, cheios de guarda-costas. Durante anos, muitos colombianos puderam manter a guerra à distância.

Quando eu era menino e meu pai me dava boa noite, eu às vezes lhe perguntava a que distância ficava o campo de batalha mais próximo. A quatro ou seis horas de distância, ele dizia, me tranquilizando. Na realidade, porém, ficava muito mais perto. Uma noite, quando eu tinha nove anos, fomos assaltados em casa.

Quando os assaltantes fortemente armados colocaram as joias de minha mãe e nossos eletrodomésticos em sacolas, um deles viu uma foto emoldurada de mim, sorridente, aos três anos, no Walt Disney World. "Eu também queria que meus filhos conhecessem Mickey Mouse", falou o ladrão em tom sarcástico.

Os assaltantes obrigaram meu pai a abrir um cofre, dizendo que, se não o fizesse, sequestrariam minha irmã de dois anos.

Durante os anos 1990 a guerra foi penetrando nas cidades. Assassinatos de juízes e promotores se tornaram comuns. Ataques a bomba aconteciam com frequência assustadora. Os sequestros, em sua maioria feitos pelas Farc, eram tão corriqueiros que muitos assaram a fazer seguro contra sequestro.

Quando finalmente consegui uma audiência com Marín, o alto representante das Farc em Havana, ele não demonstrou o menor remorso pelos sequestros, apesar de as Farc terem repudiado a tática. Ele me corrigiu: "As retenções foram feitas para apoiar a rebelião".

Marín também ignorou perguntas sobre o papel das Farc no narcotráfico, que é fartamente documentado. Mas ele disse que achou dolorosos os depoimentos das vítimas. "Testemunhamos a dor que pesa sobre muitos colombianos em consequência deste conflito", ele disse.

Os dois lados chegaram a acordos provisórios sobre reformas agrárias, uma abordagem de longo prazo para refrear o tráfico de drogas e um acordo político que permitirá ao grupo guerrilheiro competir nas urnas.

A tarefa final e mais complexa envolve decidir quem será punido, e com que gravidade, pelos abusos na guerra, e também como absorver membros da base guerrilheira na sociedade civil.

Marín argumenta que líderes guerrilheiros não devem encarar sentenças de prisão. "Não vamos pedir perdão por termos usado armas", ele disse.

O governo colombiano se esforça para criar um sistema judicial para a guerra. "Uma anistia ampla está fora de questão", disse o negociador-chefe do governo, Sergio Jaramillo. "É preciso haver responsabilização."

Marín disse que todos os colombianos precisam se unir para "um ato de perdão". "Precisamos jurar que 'nunca mais'."

Naquela noite fiquei acordado, lembrando a ansiedade que sentia na infância. Senti saudades do país que deixei e refleti que quase não sinto mais que ele seja meu lar. Não confio em Marín, mas talvez a esperança exija que confiemos em suas palavras.

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