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Opinião

Holden Caulfield tornou-se paradigma da adolescência

Osny Tavares, repórter de Mundo

Desde a publicação de O apanhador no Campo de Centeio, em 1951, todo adolescente xarope deve algo a J. D. Salinger. O personagem Holden Caulfield, que escondia a ansiedade em relação ao futuro com uma atitude despojada, se tornou o paradigma da inquietação juvenil. Mesmo os que não leram a obra original estão diretamente conectados à tour de force do jovem de 16 anos que, expulso do colégio, precisa confrontar os pais. Ao longo das décadas seguintes, ele reencarnou em James Dean, nos Beatles, Ferris Bueller (o personagem de Matthew Broderick em Curtindo a vida adoidado),

Dawson Leery (do seriado-fenômeno Dawson’s Creek) e hoje paira como conselheiro indireto dos emos.

Até os anos 1950, o conceito de adolescência praticamente inexistia. A passagem para a idade adulta se dava de maneira abrupta, quando o jovem substituía a escola pelo emprego e os calções com suspensórios pela calça comprida. No caso das mulheres, o casamento era o ponto de ruptura.

Salinger foi o primeiro escritor a perceber que, após a 2ª Guerra Mundial, uma espécie de ressaca humanística fazia doer a cabeça dos jovens. Eles estavam destinados a herdar um mundo que não haviam construído (ou destruído), e suas expectativas estavam desconectadas das dos seus pais (como sempre desde então).

Como todo herói da literatura moderna, Caulfield era, à primeira vista, um transgressor. Mas sua recusa ao conformismo era, acima de tudo, o enfado por sonhar um sonho natimorto. Com ele, o jovem do século 20 aprendeu que, para seguir em frente, o mais importante é olhar para os lados.

"O homem imaturo é aquele que quer morrer gloriosamente por uma causa. O homem maduro se contenta em viver humildemente por ela." O dono da frase, Jerome David Salinger, morreu na última quarta-feira em sua casa, na cidade de Cornish, no estado americano de Nova Hampshire. Ele tinha 91 anos, completados no dia 1.º de janeiro, e será lembrado por muito tempo como o autor de O Apa­­nhador no Campo de Centeio, publicado nos Estados Unidos em 1951 – no Brasil, o livro chegou na dé­­cada seguinte, em 1965.

Se a literatura foi uma causa para Salinger, ele de fato viveu hu­­mildemente por ela. Depois de per­­­­seguir o sucesso com o vigor da ju­­ventude, ele se tornou um fenômeno de vendas e uma celebridade aos 32, quando publicou a história do jovem Holden Caul­­field.

Expulso de mais uma escola (a sexta, se não falha a memória), Holden tem de encarar os pais. As­­sim como outros jovens, ele não se encaixa no mundo que vê e parece não tolerar os adultos, sobretudo os pais – curiosamente, o ro­­mance é dedicado à mãe do autor. A entrada na vida adulta é uma droga, sugere Holden, mas a partir dos anos 1950, ela passou a acontecer em meio mundo por meio da leitura de O Apanhador no Campo de Centeio.

Vendo sua privacidade evaporar, Salinger não demorou a responder ao sucesso de modo arisco. Trocou Nova Iorque por Cor­­nish e, num período de dez anos, em que publicou outros três li­­vros, desapareceu. Na verdade, se sabia que ele estava vivendo nu­­ma casa longe de tudo. "Desapa­­recer", aqui, se refere à literatura. Para ter paz e tranquilidade, Salinger nunca mais publicou coisa alguma.

No Brasil, ele fez um contrato com a Editora do Autor, responsável pela publicação de sua bibliografia há mais de 40 anos – que inclui Nove Estórias e Franny e Zo­­oey, além de O Apanhador... A pedido de Salinger, os livros não trazem foto nem texto biográfico. As capas são monocromáticas e se li­­mitam a exibir o título e o nome do escritor. Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira & Seymour: uma Introdução, dois episódios da saga da desajustada família Glass reuni­­dos num volume, ganhou uma edição pela Companhia das Letras em 2001 e outra pela L&PM em 2007.

Nos EUA, pouco depois da pu­­blicação de O Apanhador..., ele pe­­diu que sua imagem fosse removida da sobrecapa porque já estava "enjoado" dela. Segundo o obituário veiculado ontem no site do jornal The New York Times, o autor pediu inclusive que seu agente li­­terário queimasse todas as cartas enviadas por fãs.

Os pesquisadores Ian Hamil­­ton e Warren French são responsáveis pelas duas biografias de Salinger, obviamente não-autorizadas, disponíveis também no Brasil. Fora de catálogo, ambas podem ser encontradas em sebos.

O escritor quebrou o seu silêncio diante de situações bizarras. Numa delas, aceitou conceder uma entrevista para adolescentes de uma escola em Cornish. Em ou­­tra, veio a público para processar os editores de uma antologia de contos seus. Os sujeitos compilaram textos publicados em revistas e fizeram dois volumes de histórias. Salinger ficou possesso e conversou com Lacey Fosburgh, do New York Times. O título da reportagem, publicada na edição de 3 de novembro de 1974, é impagável: "J.D. Salinger fala sobre o seu silêncio".

Na ocasião, o escritor disse que não parou de escrever em momento algum: "Há uma paz maravilhosa no fato de não publicar. É tranquilizante. Ainda. Publicar é uma invasão terrível da minha privacidade. Gosto de escrever. Amo escrever. Mas eu escrevo apenas para mim e para o meu próprio prazer".

Na mesma entrevista, ele sugere que todos os textos que passou anos produzindo poderiam ser publicados depois de sua morte.

Em 2001, a escritora e crítica literária Janet Malcolm, em um texto para o New York Review of Books, saiu em defesa de Salinger, rebatendo críticas que ele recebeu de gente graúda como John Up­­dike e Joan Didion. "No final dos anos 1950, quando os contos "Fran­­ny", "Zooey" e "Carpinteiros, Le­­vantem Bem Alto a Cumeeira" saíram em revistas, Salinger não era mais o autor universalmente amado de O Apanhador no Campo de Centeio, ele era o criador sério e desagradável da família Glass", disse Janet.

Ela comenta também "Hap­­worth 26, 1924", um conto longo publicado pela revista New Yorker em 1965. Em 2001, surgiu o ru­­mor de que o texto sairia no formato de livro, mas ele teria voltado atrás na decisão.

Ironia da vida, Salinger saiu de cena, mas nunca deixou de ser lembrado, lido e, do seu ponto de vista, incomodado. Mark David Chapman, o assassino de John Lennon, disse ter se inspirado nas páginas de O Apanhador... Joyce Maynard, uma namorada do tempo de colégio, escreveu sobre os dez meses de relacionamento (Abandonada no Campo de Centeio, pela Geração Editorial). A filha, Margaret, fez um relato sobre o pai e foi censurada inclusive pelo irmão, Matt, que disse não ter reconhecido o homem que ela descreveu em suas memórias (inéditas no Brasil). Um sueco tentou publicar uma continuação de O Apanhador... no ano passado e foi processado.

Ano-sim-ano-não, surge alguma notícia relacionada ao escritor ou à sua obra. Sem mencionar que é impossível encontrar um autor capaz de falar sobre a experiência de ser jovem sem ouvir algo do tipo "o novo Salinger" ou "o Sa­­linger dos anos 2000".

Sobre os fãs, a lista não tem fim e um deles é o paranaense Dalton Trevisan.

Agora, a morte tira Salinger de cena por completo e coloca toda a atenção em sua obra.

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Interatividade

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