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Uma estudante passa por muro com cartazes do ANC antes das eleições gerais da África do Sul, em maio de 2019
Uma estudante passa por muro com cartazes do ANC antes das eleições gerais da África do Sul, em maio de 2019| Foto: Gulshan Khan / Washington Post

Os sul-africanos votaram nesta quarta-feira (8), quase exatamente 25 anos depois de uma longa luta de libertação, cheia de imenso sacrifício, que acabou com o apartheid e inaugurou uma era democrática para todos os seus cidadãos.

O presidente Cyril Ramaphosa, amplamente estimado para ser reeleito, votou em Soweto, o berço da luta, onde líderes como Nelson Mandela e sua esposa Winnie viveram. Seu principal adversário fez o mesmo.

A notável história de sucesso de Ramaphosa - o garoto pobre que virou fervoroso combatente anti-apartheid, depois se tornou um magnata dos negócios e, por fim, presidente - é um bálsamo para os sul-africanos em um momento em que a grande taxa de desemprego e repetidas recessões deixam muitos com a sensação de que seu país está à beira do colapso.

Um quarto de século depois que o partido de Mandela, o Congresso Nacional Africano (CNA) assumiu o poder após décadas de governo da minoria branca, o partido está amargamente dividido por causa de graves acusações de corrupção contra o ex-presidente Jacob Zuma. O CNA ainda é o partido apoiado pela maioria dos sul-africanos, mas de acordo com as pesquisas do Pew Research Center, quase dois terços da população está insatisfeita com a forma como a democracia funciona no país.

Desânimo entre os jovens

Pela cidade de Soweto, lar de mais de um milhão de habitantes, um grande número de jovens ficou em casa na quarta-feira, não vendo sentido em votar. Ecoando um número crescente de jovens em todo o mundo, eles disseram que a democracia não está funcionando - e que eles não votariam agora, ou nunca.

"Os partidos políticos têm uma coisa em comum: fazem muitas promessas e quebram todas", disse Lucky Gumede, 23 anos, que mora em Kliptown, uma área de barracos e casas entre uma ferrovia e um pântano em Soweto. "Então, por que votar quando posso relaxar com meus amigos?"

Lucky Gumede e sua vizinha Phindile Nkosi caminham por Kliptown. Gumede decidiu não votar, Nkosi votou pelo CNA
Lucky Gumede e sua vizinha Phindile Nkosi caminham por Kliptown. Gumede decidiu não votar, Nkosi votou pelo CNA| Gulshan Khan / The Washington Post

O número de jovens sul-africanos registrados para votar caiu para o nível mais baixo em pelo menos 20 anos, de acordo com a Comissão Eleitoral Independente. Mais da metade dos sul-africanos entre 15 e 24 anos estão desempregados, como Gumede, o que coloca o país entre os três últimos do mundo, segundo o Banco Mundial.

Então, relaxar com os amigos foi o que Gumede fez enquanto uma multidão mais velha percorria os caminhos de terra para votar no frio da manhã.

"Se você me der um emprego, eu votarei, mesmo em você", disse Toto Nophala, 25 anos, um dos amigos de Gumede a um repórter.

"Meu amigo, eu prefiro dormir do que votar", disse outro, Junior Sibeko, 20 anos. "Mais alguma pergunta antes de eu dizer boa noite?"

Eleitora caminha para o local de votação em Kliptown, Soweto, na manhã do dia de eleição geral na África do Sul
Eleitora caminha para o local de votação em Kliptown, Soweto, na manhã do dia de eleição geral na África do Sul| Gulshan Khan / The Washington Post

Emprego escasso

Kliptown não é a cidade mais negligenciada, de longe. Mas suas casas ainda não têm água corrente, e todo mundo usa banheiros portáteis, já que não há sistema de esgoto. A família de Gumede, como a maioria do local, se sustenta inteiramente por "concessões sociais" - programas de bem-estar social da África do Sul. Os oito membros de sua família dividem cerca de US$ 120 por mês.

"Estamos vivendo um dia de cada vez aqui", disse Gumede. "Os subsídios sociais são apenas para nos manter vivos. Às vezes eu varro a loja de alguém. Ou às vezes eu limpo depois de um evento em algum lugar. Mas estou falando de um trabalho uma vez a cada dois meses."

"Promessas vazias"

Os jovens nos arredores de Soweto e em outras municipalidades de Joanesburgo, a maior cidade do país, tinham palavras particularmente duras para o partido de Ramaphosa, o Congresso Nacional Africano, que governa desde o fim do apartheid e provavelmente continuará a fazê-lo.

Para aqueles muito jovens para terem sofrido com o apartheid, há apenas uma África do Sul: esta, com seus péssimos serviços públicos, desemprego desenfreado e desigualdade gritante. Muitos municípios, onde a maioria dos negros urbanos moram, ficam à sombra de bairros elegantes, de maioria branca, que se parecem com subdivisões muradas de Malibu ou Beverly Hills. A taxa de desemprego entre os brancos gira em torno de 7%, próxima da média global.

Um refrão estava na ponta da língua de todo mundo: "promessas vazias". A desconfiança foi o ponto de partida da experiência deles com as eleições e o desânimo foi o resultado final.

"Nós perdemos o coração", disse Simo Mpapa, 30 anos, morador de Kliptown que está tentando "sair do gueto" escrevendo roteiros para programas de televisão. "Nós nunca vimos nada diferente aqui. Vá para Diepsloot, Vosloorus, qualquer que seja o município, é tudo a mesma coisa. Dizer que o apartheid acabou não é uma verdade completa."

O líder mais popular desde Mandela

De acordo com pesquisa da Citizen Surveys South Africa feita em março deste ano, 79% dos sul-africanos acreditam que a corrupção está aumentando. Apenas 22% acreditam que o país está indo na direção certa.

Paradoxalmente, Ramaphosa se tornou o líder mais popular da África do Sul desde Mandela. Ele é presidente há menos de um ano e meio, mas mantém a reputação de incorruptível devido a sua grande fortuna pessoal de mais de uma década em grandes negócios.

Como ele votou a menos de um quilômetro de Kliptown na quarta-feira, Ramaphosa disse aos repórteres que "a corrupção entrou no caminho" da libertação e que ele sentia muito por isso.

Seu partido, o CNA, ainda é reverenciado por muitos sul-africanos como o resgatador da liberdade e o portador da tocha do legado de Mandela.

"Os jovens não entendem o que passamos", disse Simon Mpinga, 74 anos, que trabalhava em uma fazenda de propriedade branca até os 50 anos e agora mora a alguns quarteirões de distância de Gumede, em Kliptown. "A vida sob o apartheid era ruim. As pessoas brancas nos faziam trabalhar e depois nos expulsavam. Você não podia sentir que era um homem naqueles dias."

Simon Mpinga, que vive em Kliptown desde 1993, vota nesta quarta-feira
Simon Mpinga, que vive em Kliptown desde 1993, vota nesta quarta-feira| Gulshan Khan / The Washington Post

Desde o fim do apartheid, no entanto, Mpinga não encontrou trabalho. Mesmo na velhice e com a cegueira começando, ele recolhe metal descartado e plástico para reciclagem em troca de pouco dinheiro. O quintal ao lado do seu barraco está cheio de sucata. Um sofá do lado de fora é apoiado por tijolos. O telhado de zinco corrugado é preso por dois velhos pneus de borracha.

Mpinga sempre votou no ANC. No início, foi por fidelidade à luta de libertação. Agora ele está apenas esperando por uma ajuda.

"O pessoal do ANC diz que devemos votar. Essa é a única maneira de conseguir pacotes de comida, um cobertor ou uma casa melhor um dia", disse ele. E ele repetiu o que muitos antes dele haviam dito também. "As promessas são vazias, todas elas."

E ainda na manhã de quarta-feira, ele vestiu uma jaqueta e luvas e atravessou a favela em direção à cabine de votação, instalada sob uma tenda.

"Eu estou votando apenas por votar", disse Mpinga. "Por quê? Porque quem sabe. Porque quem sabe."

Quando ele começou a caminhada de volta para casa, ele se abaixou para pegar uma garrafa de plástico vazia e a colocou no bolso da jaqueta.

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