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Há cerca de dois meses, participei de um debate sobre a questão do racismo. Na ocasião, não quis fazer nenhuma longa exposição, até porque só pode falar da dor quem a sente. E o mais indicado para falar de racismo é quem vive e sofre suas conseqüências no corpo e na alma.

Não quis falar também porque estavam presentes vários negros e negras que poderiam, com mais competência – e assim o fizeram –, falar sobre essa dor. Apenas, por entender como importantes e significativos para aquele momento, resolvi contar dois pequenos fatos.

Ao terminar o debate, o professor e militante das causas negras, Romeu Gomes de Miranda, ex-presidente da APP-Sindicato, sugeriu que eu escrevesse a respeito desses fatos que acabara de contar. É o que passo a fazer no presente texto.

Já formado médico e fazendo a residência (especialidade) em pediatria, conheci Paulo César, um negrinho de 10 anos que sofria de anemia falciforme.

A anemia falciforme é uma doença de origem genética própria dos negros, que altera os glóbulos vermelhos. Os mesmos deixam de ser arredondados e passam a ter a forma de foice.

Por ter uma forma diferente do que deveriam, os glóbulos passam a ser destruídos pelo baço. Sua destruição, ao mesmo tempo em que causa a anemia, provoca também um aumento de ferro no organismo.

Os sintomas causados pela anemia falciforme são os mais diversos possíveis, dependendo da sua gravidade. No caso de Paulo César, formavam-se pequenos coágulos que obstruíam parte da circulação sanguínea para o cérebro.

Com isso, Paulinho tinha alucinações: enxergava animais que iam devorá-lo. Assim, além de algumas dores pelo corpo, ele vivia o pavor diurno e noturno de ser devorado por algum bicho, como ele dizia.

Eis uma dor que só os negros podem sentir.

O segundo caso ocorreu mais recentemente. Era um sábado à tarde, eu estava caminhando próximo a minha casa quando passou por mim um jovem negro carregando sobre o ombro algumas ferramentas de trabalho, típicas de um jardineiro.

Logo atrás vinha um outro, mais idoso, também com algumas ferramentas, que se dirigiu a mim mais ou menos com a seguinte frase: "Senhor, sou preto, mas não sou ladrão..."

Parei para ouvi-lo, e fui logo respondendo que uma pessoa, por ser negra, não tem que ser bandido, e bandidagem não tem relação com a cor da pele. Em todas as etnias há gente boa e gente "que não presta".

Respondeu-me ele que, antes, havia tentado parar outras pessoas para pedir uma informação. Mas ninguém parava para ouvi-lo.

Dei-lhe a informação, continuei a caminhar, mas o fato ficou comigo com a seguinte pergunta: qual é o tamanho da dor deste homem?

São dois casos que retratam dois tipos de dor. Ambos têm como razão de fundo a cor da pele. Paulo César carregou, até sua morte, uma dor e um sofrimento físico por uma doença própria da sua condição étnica.

E o senhor carrega uma dor psicológica: a todo instante, precisa reafirmar que não é bandido.

No último domingo, 20 de novembro, foi o dia da Consciência Negra, data considerada de aniversário da morte de Zumbi.

Em geral, usa-se a palavra aniversário para os festejos do dia do nascimento. No caso de Zumbi, é correto festejarmos os dois, pois, mesmo depois da morte, ele está vivo na memória de todos os negros e negras – e, por que não, também dos brancos e brancas? – que lutam pelo fim da exploração e opressão de um povo.

Aliás, a palavra Zumbi tem como raiz nzumb (Dicionário Houaiss), que vem do quimbundo, língua dos bantos (falada em Angola), que liga à idéia da imortalidade. Zumbi é imortal.

Dr. Rosinha, médico pediatra, é deputado federal (PT-PR) e secretário-geral da Comissão do Mercosul.

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