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A sorte do prefeito do Rio, César Maia, e de seus burocratas da área de saúde é que os brasileiros mais pobres são infinitamente tolerantes, pois, se não o fossem, teriam reagido com fúria à escandalosa demonstração de falta de respeito ao sofrimento alheio com que os brindaram: o Hospital Souza Aguiar, o maior centro público de emergência da cidade, foi fechado por ter entrado em colapso, com as prateleiras raspadas, sem materiais, remédios, gazes, esparadrapos e sem pessoal médico, além de estar afogado em dívidas com fornecedores. Centenas de pessoas, algumas agonizantes, foram deixadas à míngua, jogadas ao chão por falta de macas ou mandadas de volta para a rua. César Maia, para quem não se lembra, é o prefeito que se gaba de seu gênio administrativo, aquele mesmo que reagiu indignado à intervenção do governo federal no sistema de saúde carioca no ano passado quando os hospitais já haviam chegado a um nível crítico de funcionamento.

A Previdência Social não fez por menos com a mesma e sofrida população carioca: 21 postos de atendimento não puderam abrir na segunda-feira porque a Light cortou a energia do INSS em virtude da falta crônica de pagamento. Milhares de pessoas que saíram de casa de madrugada para conseguir um atendimento voltaram para casa de mãos abanando e estômago vazio. O INSS, em vez de – pelo menos – pedir desculpas à população, preferiu produzir uma nota indignada em que acusa a Light de agir de maneira irresponsável e precipitada. Ou seja: ele, que não pagou a conta e causou o desconforto de milhares de pessoas pobres obrigadas a fazer uma viagem inútil, ainda se dá ao luxo de aplicar lições de moral ao credor .

Aliás, César Maia, a diretoria da Previdência e seus aspones tiveram outra sorte, a de viver no século 21 e no Brasil. Se tivessem vivido na Bagdá do século 8, possivelmente teriam perdido a cabeça em sentido literal por ordem do califa Haroun-al-Rashid que, com sua mania de andar incógnito pela cidade observando como os funcionários do califado tratavam seus súditos, costumava ministrar uma justiça sumária e altamente eficaz quando percebia uma manifestação de arrogância contra os humildes.

Em relação à burocracia oficial já vivi as situações mais diversas. Certa vez chegamos ao Rio, Elizabeth e eu, no mesmo avião em que vieram Luma de Oliveira e seu então marido Eike Batista, que estavam na nossa frente na fila da imigração. O aeroporto estava cheio e a fila demorada, quando se aproxima de nós uma moça gentilíssima, pega Luma e o marido e sai com eles alegremente trocando salamaleques e deixando para trás os trouxas esperando. O contraste com outra situação que vivemos antes era gritante. Estávamos na fila de imigração do Aeroporto Kennedy quando notamos uma excitação no ar, um murmúrio, os funcionários cochichando eletrizados com alguma coisa. A causa da excitação era a presença de Pelé no fim da fila, onde distribuía autógrafos para os outros passageiros. A euforia dos funcionários americanos com a proximidade do rei era visível, mas não ocorreu a ninguém correr para passá-lo à frente dos demais passageiros, que constituíam aquele grupo que Mario Monicelli chamou em um filme memorável de "os anônimos habituais".

Experiências de ultramar, impossíveis de acontecer aqui? Nem de longe e dois exemplos me convenceram disso. Precisei renovar a carteira de motorista e Elizabeth seu passaporte. Como quaisquer brasileiros que se preparam para solicitar alguma coisa em uma repartição pública, preparamo-nos também para jornadas de esperas, demoras, chateações e frustrações; de falta de informação precisa a respeito dos documentos necessários, horários esdrúxulos, grosserias de funcionários mal-encarados e desatenciosos, demonstrações explícitas de má-vontade. Agradável surpresa: tanto no Detran como na Polícia Federal, encontramos ampla informação prévia, filas respeitadas, funcionários corteses e rápidos, horários convenientes; nenhum luxo, instalações modestas e em certos aspectos incômodas, mas o fato é que uma eficácia discreta impregnava o ambiente. Todos sabiam o que fazer, faziam de maneira rápida, silenciosa e objetiva. Não era necessário mais e foi isso que encontramos.

Comentei esses casos com algumas pessoas e elas me relataram boas surpresas que tiveram em circunstâncias parecidas em outros lugares mas, infelizmente, estamos falando de um pequeno arquipélago de cordialidade e de eficiência em um mar de desatenção e de desrespeito. Será que é tão difícil universalizar esse tipo de atendimento ao cidadão, ao contribuinte, ao usuário? A população não pede nem espera muito. Só espera o tipo de eficácia discreta e despojada que encontramos nos dois casos.

Quando um brasileiro comum se aproxima de uma repartição pública espera entrar no inferno. Mas quando, sem precisar ser a Luma ou o Eike, recebe um mínimo de atenção dos burocratas oficiais acredita piamente que a classe operária finalmente chegou ao paraíso.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Mestrado em Organizações da FAE Business School.

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